Semântica da Vida - Usa (BNP/E3, 2-75r)

Outra vez encontrei um trecho meu


L. do D.

Outra vez encontrei um trecho meu, escripto
em francez, sobre o qual haviam passado já quinze annos.
Nunca estive em França, nunca lidei de perto com france-
zes, nunca tive exercicio, portanto, d'aquella lingua, de
que me houvesse deshabituado. Leio hoje tanto francez como
sempre li. Sou mais velho, sou mais practico de pensamen-
to: deverei ter progredido. E esse trecho do meu passado
longinquo tem uma segurança no uso do francez que eu hoje
não possúo; o estylo é fluido, como hoje o não poderei
ter naquelle idioma; ha trechos inteiros, phrases comple-
tas, fórmas e modos de expressão que accentuam um dominio
d'aquella lingua de que me extraviei sem que me lem-
brasse que o tinha. Como se explica isto? A quem me sub-
stitui dentro de mim?

Bem sei que é facil formar uma theoria da
fluidez das coisas e das almas, comprehender que somos
um decurso interior de vida, imaginar que o que somos é
uma quantidade grande, que passamos por nós, que fomos
muitos... Mas aqui ha outra coisa que não o mero decurso
da personalidade entre as proprias margens: ha o outro
absoluto, um ser alheio que foi meu. Que perdesse, com
o accrescimo da edade, a imaginação, a emoção, um typo
da intelligencia, um modo de sentimento — tudo isso,
fazendo-me pena, me não faria pasmo.
Mas a que assisto quando me leio como a um extranjo? A
que beira estou se me vejo no fundo?

Outras vezes encontro trechos que me não lem-
bro de ter escripto — o que é pouco para pasmar —, mas
que nem me lembro de poder ter escripto — o que me apa-
vora. Certas phrases são de outra mentalidade. É como se
encontrasse um retrato antigo, sem duvida meu, com uma
estatura differente, com umas feições incognitas — mas
indiscutivelmente meu, pavorosamente eu.