Ler o Escrever - Usa LdoD-Arquivo(125)

Quando durmo muitos sonhos


L. do D.                        20/7/1930.

Quando durmo muitos sonhos,venho para a rua, de olhos
abertos, ainda com o rastro e a segurança d'elles. E pasmo
do automatismo meu com que os outros me desconhecem. Porque
atravesso a vida quotidiana sem largar a mão da ama astral,
e os meus passos na rua vão concordes e consoantes com ob-
scuros designios da imaginação de dormir. E na rua vou cer-
to; não cambaleio; respondo bem; existo.

Mas, quando ha um intervallo, e não tenho que vigiar
o curso da minha marcha, para evitar vehiculos ou não estor-
var peões, quando não tenho que fallar a alguem,
nem me pesa a entrada para uma porta proxima,
largo-me de novo nas aguas do sonho, como
um barco de papel dobrado em bicos, e de novo regresso
á illusão mortiça que me acalentara a vaga consciencia da
manhã nascendo entre o som dos carros que hortaliçam.


E então, em plena vida, é que o sonho tem grandes ci-
nemas. Desço uma rua irreal da Baixa e a realidade
das vidas que não são ata-me, com carinho, a cabeça
num trapo branco de reminiscencias falsas. Sou navegador
num desconhecimento de mim. Venci tudo onde nunca estive.
E é uma brisa nova esta somnolencia com que posso andar,
curvado para a frente numa marcha sobre o impos-
sivel.

Cada qual tem o seu alcool. Tenho alcool bastante em
existir. Bebado de me sentir, vagueio e ando certo. Se são
horas, recolho ao escriptorio como qualquer outro. Se não
são horas, vou até ao rio fitar o rio, como qualquer outro.
Sou egual. E por traz de isso, ceu meu, constello-me ás
escondidas e tenho o meu infinito.