Durei horas incognitas
TRECHO
DE UM LIVRO DO DESASOCEGO COMPOSTO POR BER-
NARDO SOARES, AJUDANTE DE GUARDA-LIVROS NA
CIDADE DE LISBOA
DUREI horas incognitas, momentos successivos
sem relação, no passeio em que fui, de noite,
à beira sòsinha do mar. Todos os pensa-
mentos, que teem feito viver homens, todas
as emoções, que os homens teem deixado de viver,
passaram por minha mente, como um resumo escuro
da história, nessa minha meditação andada à beira-
-mar.
Soffri em mim, commigo, as aspirações de todas as
eras, e commigo passearam, à beira ouvida do mar, os
desasocegos de todos os tempos. O que os homens
quizeram e não fizeram, o que mataram fazendo-o,
o
que as almas foram e ninguem disse — de tudo isto se
formou a alma sensivel com que passeei de noite à
beira-mar. E o que os amantes extranharam no outro
amante, o que a mulher occultou, sempre ao marido de
quem é, o que a mãe pensa do filho que não teve, o
que teve fórma só num sorriso ou numa opportunidade,
num tempo que não foi esse ou numa emoção que
falta — tudo isso, no meu passeio á beira-mar, foi
commigo e voltou commigo, e as ondas estorciam
magnamente o acompanhamento que me fazia dor-
mil-o.
Somos quem não somos, e a vida é prompta e triste.
O som das ondas á noite é um som da noite; e quan-
tos o ouviram na propria alma, como a esperança
constante que se desfaz no escuro com um som surdo
de espuma funda! Que lagrimas choraram os que obti-
veram, que lagrimas perderam os que conseguiram!
E tudo isto, no passeio á beira-mar, se me tornou o
segredo da noite e a confidência do abysmo. Quantos
somos! Quantos nos enganamos! Que mares soam
em nós, na noite de sermos, pelas praias que nos senti-
mos nos alagamentos da emoção!
Aquillo que se perdeu, aquillo que se deveria ter
querido, aquillo que se obteve e satisfez por erro, o que
amámos e perdemos e, depois de perder, vimos, aman-
do-o por tel-o perdido, que o não haviamos amado; o
que julgavamos que pensavamos quando sentiamos; o
que era uma memória e criamos que era uma emoção;
e o mar todo, vindo lá, rumoroso e fresco, do grande
fundo de toda a noite, a estuar fino na praia, no de-
curso nocturno do meu passeio á beira-mar...
Quem sabe sequer o que pensa, ou o que deseja?
Quem sabe o que é para si-mesmo? Quantas coisas
a música suggere e nos sabe bem que não possam ser!
Quantas a noite recorda e choramos, e não foram
nunca! Como uma voz solta da paz deitada ao com-
prido, a enrolação da onda estoira e esfria e há um
salivar audivel pela praia invisivel fóra.
Quanto morro se sinto por tudo! Quanto sinto se
assim vagueio, incorporeo e humano, com o coração
parado como uma praia, e todo o mar de tudo, na
noite em que vivemos, batendo alto, chasco, e esfria-se,
no meu eterno passeio nocturno á beira-mar!
FERNANDO PESSOA