Leitura Crítica 1 - Usa (BNP/E3, 2-78)

Durei horas incognitas


                        T R E C H O
  DE UM "LIVRO DO DESASOCEGO, COMPOSTO POR BERNARDO SOARES,
      AJUDANTE DE GUARDA-LIVROS NA CIDADE DE LISBOA"

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Durei horas incognitas, momentos successivos sem
relação, no passeio em que fui, de noite, á beira sòsinha
do mar. Todos os pensamentos, que teem feito viver homens,
todas as emoções, que os homens teem deixado de viver, pas-
saram por minha mente, como um resumo escuro da historia,
nessa minha meditação andada á beira-mar.

Soffri em mim, commigo, as aspirações de todas as
eras, e commigo passearam, á beira ouvida do mar, os des-
asocegos de todos os tempos. O que os homens quizeram e
não fizeram, o que mataram fazendo-o, o que as al-
mas foram e ninguem disse — de tudo isto se formou a alma
sensivel com que passeei de noite á beira-mar. E o que os
amantes extranharam no outro amante, o que a mulher occul-
tou sempre ao marido de quem é, o que a mãe pensa do filho
que não teve, o que teve fórma só num sorriso ou numa op-
portunidade, num tempo que não foi esse ou numa emoção que
falta — tudo isso, no meu passeio á beira-mar, foi commigo
e voltou commigo, e as ondas estorciam magnamente o acompa-
nhamento que me fazia dormil-o.

Somos quem não somos, e a vida é prompta e triste.
O som das ondas á noite é um som da noite; e quantos o
ouviram na propria alma, como a esperança constante que se
desfaz no escuro com um som surdo de espuma funda! Que la-
grimas choraram os que obtiveram, que lagrimas perderam
os que conseguiram! E tudo isto, no passeio á beira-mar,
se me tornou o segredo da noite e a confidencia do abysmo.
Quantos somos! Quantos nos enganamos! Que mares soam em
nós, na noite de sermos, pelas praias que nos sentimos nos
alagamentos da emoção!

Aquillo que se perdeu, aquillo que se deveria ter
querido, aquillo que se obteve e satisfez por erro, o que
amámos e perdemos e, depois de perder, vimos, amando por
tel-o perdido, que o não haviamos amado; o que julgavamos
que pensavamos quando sentiamos; o que era uma memoria e
criamos que era uma emoção; e o mar todo, vindo lá, rumo-
roso e fresco, do grande fundo de toda a noite, a estuar
fino na praia, no decurso nocturno do meu passeio á beira-
mar...

Quem sabe sequer o que pensa, ou o que deseja? Quem
sabe o que é para si-mesmo? Quantas coisas a musica suggere
e nos sabe bem que não possam ser! Quantas a noite recorda e
choramos, e não foram nunca! Como uma voz solta da paz


                                                (2)


deitada ao comprido, a enrolação da onda estoira
e esfria e ha um salivar audivel pela praia invisivel
fóra.

Quanto morro se sinto por tudo! Quanto sinto se
assim vagueio, incorporeo e humano, com o coração para-
do como uma praia, e todo o mar de tudo, na noite em que
vivemos, batendo alto, chasco, e esfria-se, no meu eter-
no passeio nocturno á beira-mar!

                                FERNANDO PESSOA