Deus - Usa (BNP/E3, 8-13r)

De suave e aerea a hora


De suave e aerea a hora era uma ara onde orar. Por
certo que no horoscopo do nosso encontro beneficos conjunctos
culminavam. Tal, tão sedosa e tão subtil, a materia
incerta de sonho visto que se intromettia na nossa consciencia
de sentir. Cessara por completo, como um verão qualquer,
a nossa noção acida de que não vale a pena viver. Renascia a-
quella primavera que, embora por erro, podiamos pensar que
houvessemos tido. No desprestigio das nossas semelhanças os
tanques lamentavam-se da mesma maneira, entre arvores, e as
rosas nos canteiros descobertos, e a melodia indefinida de
viver — tudo irresponsavelmente.

Não vale a pena pressentir nem conhecer. Todo o futuro
é uma nevoa que nos cerca e amanhã sabe a hoje quando se en-
trevê. Meus destinos os palhaços que a caravana abandonou, e
isto sem melhor luar que o luar nas estradas, nem outros estre-
mecimentos nas folhas que a brisa, e a incerteza da hora e o
nosso julgar alli estremecimentos. Purpuras distantes, sombras
fugidias, o sonho sempre incompleto e não crendo que a morte
o complete, raios de sol mortiço, a lampada da casa na encosta,
a noite angustiosa, o perfume a morte entre livros só, com a
vida lá fóra, arvores cheirando a verdes na immensa noite mais
estrellada do outro lado do monte. Assim as tuas agruras tiveram
o seu consorcio benigno; as tuas poucas palavras sagraram de
regio o embarque, não voltaram nunca naus nenhumas, nem as ver-
dadeiras, e o fumo de viver despiu os contornos de tudo, deixan-
do só as sombras, e os engastes, maguas das aguas nos lagos a-
ziagos entre buxos por portões (a vista de longe) Watteau, a
angustia, e nunca mais. Millenios, só os de vires, mas a estra-
da não tem curva, e porisso nunca poderás chegar. Taças só para
as cicutas inevitaveis — não as tuas, mas a vida de todos, e
mesmo os lampeões, os recessos, as azas vagas, ouvidas só, e
com o pensamento, na noite inquieta, suffocada, que minuto a mi-
nuto se ergue de si e avança pela sua angustia fóra. Amarello,
verde-negro, azul-amôr — tudo morto, minha ama, tudo morto, e
todos os navios aquelle navio sem partir! Resa por mim, e Deus
talvez exista por ser por mim que resas. Baixinho, a fonte lon-
ge, a vida incerta, o fumo acabando no casal onde anoitece, a
memoria turva, o rio afastado... Dá-me que eu durma, dá-me que
eu me esqueça, senhora dos Designios Incertos, Mãe das Cari-
cias e das Bençãos inconciliaveis com existirem eu existir.........