12/6/1930.
L. do D.
Ha momentos em que tudo cansa, até o que nos repou-
saria. O que nos cansa porque nos cansa; o que nos repou-
saria porque a idéa de o obter nos cansa. Ha abatimentos
da alma abaixo de toda a angustia e de toda a dor; creio
que os não conhecem senão os que se furtam ás angustias e
ás dores humanas, e teem diplomacia comsigo mesmos para
se esquivar ao proprio tedio. Reduzindo-se, assim, a se-
res couraçados contra o mundo, não admira que, em certa
altura da sua consciencia de si-mesmos, lhes pese de re-
pente o vulto inteiro da couraça, e a vida lhes seja uma
angustia ás avessas, uma dor perdida.
Estou em um d'esses momentos, e escrevo estas linhas
como quem quer ao menos saber que vive. Todo o dia, até
agora, trabalhei como um somnolento, fazendo contas por
processos de sonho, escrevendo ao longo do meu torpor.
Todo o dia me senti pesar a vida sobre os olhos e contra
as temporas — somno nos olhos, pressão para fóra
nas temporas, consciencia de tudo isto no estomago, nau-
sea e desalento.
Viver parece-me um erro metaphysico da materia, um
descuido da inacção. Nem olho o dia, para ver o que elle
tem que me distraia de mim, e, escrevendo-o eu aqui em
descripção, tape com palavras a chicara vazia do meu não
me querer. Nem olho o dia, e ignoro com as costas dobra-
das se é sol ou falta de sol o que está lá fóra na rua
∧subjectivamente triste, na rua deserta onde está passando o
som de gente. Ignoro tudo e doe-me o peito. Parei de tra-
balhar e não quero mexer-me de aqui. Estou olhando para
o mata-borrão branco sujo, que alastra, pregado aos
cantos, por sobre a grande edade da secretaria inclinada.
Fito attentamente os rabiscos de absorpção e distracção
que estão borrados nelle. Varias vezes a minha assignatu-
ra ás avessas e ao invez.
Alguns numeros aqui e alli,
as-
sim mesmo. Uns desenhos de nada, feitos pela minha desat-
tenção.
Olho a tudo isto como um aldeão de mata-borrões,
com uma attenção de quem olha novidades, com todo o cere-
bro inerte por traz dos centros cerebraes que
promovem a visão.
Tenho mais somno intimo do que cabe em mim. E não
quero nada, não prefiro nada, não há nada a que fugir.