Uma das grandes tragédias da minha vida


Uma das grandes tragédias da minha vida — porém daquelas tragédias que se passam na sombra e no subterfúgio — é a de não poder sentir qualquer coisa naturalmente. Sou capaz de amar e odiar, como todos, de, como todos, recear e entusiasmar-me; mas nem meu amor, nem meu ódio, nem meu receio, nem meu entusiasmo, são exactamente aquelas mesmas coisas que são. Ou lhes falta qualquer elemento, ou se lhes acrescenta algum. O certo é que são qualquer outra coisa, e o que sinto não está certo com a vida.

Nos espíritos a que chamam calculistas — e a palavra é muito bem delineada —, os sentimentos sofrem a delimitação do cálculo, do escrúpulo egoísta, e parecem outros. Nos espíritos a que chamam propriamente escrupulosos, a mesma deslocação dos instintos naturais se nota. Em mim nota-se igual perturbação da certeza do sentimento, mas nem sou calculista, nem sou escrupuloso. Não tenho desculpa para sentir mal. Por instinto desnaturo os instintos. Sem querer, quero erradamente.


Título: Uma das grandes tragédias da minha vida
Heterónimo: Bernardo Soares
Número: 431
Página: 387
Nota: [1-47, dact.];