Depois que os ultimos calores do estio


L. do D.

Depois que os ultimos calores do estio deixavam
de ser duros ao sol baço, começava o outomno antes que
viesse, numa leve tristeza, prolixamente indefinida,
que parecia uma vontade de não sorrir do céu. Era um
azul umas vezes mais claro, outras mais verde, da pro-
pria ausencia de substancia da côr alta; era uma espe-
cie de esquecimento nas nuvens, purpuras differentes e
esbatidas; era, não já um torpor, mas um tedio, em toda
a solidão quieta por onde o que fora nuvens nevoa
atravessam se esfumava.

A entrada do verdadeiro outomno era depois annun-
ciada por um frio dentro do não-frio do ar, por um es-
bater-se das côres que ainda se não haviam esbatido,
por qualquer coisa de penumbra e de afastamento no que
havia sido o tom das paisagens e o aspecto disperso das
coisas. Nada ia ainda morrer, mas tudo, como que num
sorriso que ainda faltava, se virava em saudade para
a vida o mundo.

Vinha, por fim, o outomno certo: o ar tornava-se
frio de vento; soavam folhas num tom secco, ainda que
não fossem folhas seccas; toda a terra tomava a côr e
a fórma impalpavel de um paul incerto. Descoloria-se
o que fora sorriso ultimo, num cansaço de palpebras,
numa indifferença de gestos. E assim tudo quanto sen-
te, ou suppomos que sente, apertava, intima, ao peito
a sua propria despedida. Um som de
redemoinho num atrio fluctuava atravez da nossa consci-
encia de outra coisa qualquer. Aprazia convalescer pa-
ra sentir verdadeiramente a vida.

Mas as primeiras chuvas do inverno, vindas ainda
no outomno já duro claro, lavavam estas meias-tintas como sem
respeito. Ventos altos, chiando em coisas paradas, ba-
rulhando coisas presas, arrastrando arrasteando coisas moveis, er-
guiam, entre os brados irregulares da chuva, palavras
ausentes de protesto anonymo, sons tristes e quasi rai-
vosos de desespero sem alma.

E por fim o outomno cessava minguava, a frio e cinzento.
Era um outomno de inverno o que vinha agora, um pó tor-
nado lama de tudo, mas, ao mesmo tempo, qualquer coisa
do que o frio do inverno traz de bom — verão duro fin-
do, primavera por chegar, outomno definindo-se em in-
verno enfim. E no ar alto, por onde os tons baços já
não lembravam nem calor nem tristeza, tudo era propi
cio e à meditação indefinida.

Assim era tudo para mim antes que o pensasse.
Hoje, se o escrevo, é porque o lembro. O outomno
que tenho é o que perdi.
29/1/1932


Identificação: bn-acpc-e-e3-3-1-88_0137_69_t24-C-R0150
Heterónimo: Não atribuído
Formato: Folha (27.4cm X 21.3cm)
Material: Papel
Colunas: 1
LdoD Mark: Com marca LdoD
Manuscrito (pen) : Testemunho misto: datiloscrito a tinta azul (5-69r), e manuscrito a lápis (5-69r).
Datiloscrito (blue-ink) : Testemunho misto: datiloscrito a tinta azul (5-69r), e manuscrito a lápis (5-69r).
Data: 29-01-1932
Nota: LdoD, Texto escrito no recto de uma folha solta inteira.
Fac-símiles: BNP/E3, 3-69r.1