Mallet - Usa Jerónimo Pizarro(385)

Doem-me a cabeça e o universo


5/2/1932
L. do D.

Doem-me a cabeça e o universo. As dores physicas, mais nitidamente dores que as moraes desenvolvem, por um reflexo no espirito, tragedias incontidas nellas. Trazem uma impaciencia de tudo que, como é de tudo, não exclue nenhuma das estrellas.

Não commungo, não communguei nunca, não poderei, supponho, alguma vez commungar aquelle conceito bastardo pelo qual somos, como almas, consequencias de uma coisa material chamada cerebro, que existe, por condição, dentro de outra coisa material chamada craneo. Não posso ser materialista, que é o que, creio, se chama aquelle conceito, porque não posso estabelecer uma relação nitida — uma relação visualizavel, direi — entre uma massa visivel de materia cinzenta, ou de outra côr qualquer, e esta coisa eu que por traz do meu olhar vê os céus e os pensa, e imagina céus que não existem. Mas, ainda que nunca possa cahir no abysmo de suppor que uma coisa possa ser outra só porque estão no mesmo logar, como uma parede e a minha sombra nella, ou que depender a alma do cerebro seja mais que depender eu, para o meu trajecto, do vehiculo em que vou, creio, todavia, que ha entre o que em nós é só espirito e o que em nós é espirito do corpo uma relação de convivio em que podem surgir discussões. E a que surge vulgarmente é a de a pessoa mais ordinaria incommodar a que o é menos.

Doe-me a cabeça hoje, e é talvez do estomago que me doe. Mas a dor, uma vez suggerida do estomago á cabeça, vae interromper as meditações que tenho por traz de ter cerebro. Quem me tapa os olhos não me cega, porém impede-me de ver. E assim agora, porque me doe a cabeça, acho sem valia nem nobreza o espectaculo, neste momento monotono e absurdo, do que ahi fóra mal quero ver como mundo. Doe-me a cabeça, e isto quere dizer que tenho consciencia de uma offensa que a materia me faz, e que, porque como todas as offensas, me indigna, me predispõe para estar mal com toda a gente, incluindo a que está proxima porém me não offendeu.

O meu desejo é de morrer, pelo menos temporariamente, mas isto, como disse, só porque me doe a cabeça. E neste momento, de repente, lembra-me com que melhor nobreza um dos grandes prosadores diria isto. Desenrolaria, periodo a periodo, magua anonyma do mundo; aos seus olhos imaginadores de paragraphos surgiriam, diversos, os dramas humanos que ha na terra, e atravez do latejar das fontes febris erguer-se-hia no papel toda uma metaphysica da desgraça. Eu, porém, não tenho nobreza estylistica. Doe-me a cabeça porque me doe a cabeça. Doe-me o universo porque a cabeça me doe. Mas o universo que realmente me doe não é o verdadeiro, o que existe porque não sabe que existo, mas aquelle, meu de mim, que, se eu passar as mãos pelos cabellos, me faz parecer sentir que elles soffrem todos só para me fazerem soffrer.