Intertextualidade Filosófica - Usa (Presença, nº 34)

Muitos teem definido o homem


                        DO
              LIVRO DO DESASSOSSÊGO
      COMPOSTO POR BERNARDO SOARES, AJUDANTE
      DE GUARDA-LIVROS NA CIDADE DE LISBOA


MUITOS têm definido o homem, e em geral o
têm definido em contraste com os animais.
Por isso, nas definições do homem, é fre-
qüente o uso da frase "o homem é um ani-
mal..." e um adjectivo, ou "o homem é um animal
que..." e diz-se o quê. "O homem é um animal
doente", disse Rousseau, e em parte é verdade. "O
homem é um animal racional", diz a Igreja, e em parte
é verdade. "O homem é um animal que usa de ferra-
menta", diz Carlyle, e em parte é verdade. Mas estas
definições, e outras como elas, são sempre imperfeitas
e laterais. E a razão é muito simples: não é fácil
distinguir o homem dos animais, não há critério seguro
para distinguir o homem dos animais. As vidas huma-
nas decorrem na mesma íntima inconsciência que as
vidas dos animais. As mesmas leis profundas, que
regem de fora os instinctos dos animais, regem, tam-
bém de fora, a inteligência do homem, que parece não
ser mais que um instinto em formação, tão inconsciente
como todo instinto, menos perfeito porque ainda não
formado.

"Tudo vem da sem-razão", diz-se na Antologia
Grega. E, na verdade, tudo vem da sem-razão. Fora
da matemática, que não tem que ver senão com núme-
ros mortos e fórmulas vazias, e porisso pode ser per-
feitamente lógica, a ciência não é senão um jôgo de
crianças no crepúsculo, um querer apanhar sombras
de aves e parar sombras de ervas ao vento.

E é curioso e estranho que, não sendo fácil encon-
trar palavras com que verdadeiramente se defina o
homem como distinto dos animais, é todavia fácil
encontrar maneira de diferençar o homem superior do
homem vulgar.

Nunca me esqueceu aquela frase de Haeckel, o
biologista, que li na infância da inteligência, quando
se lêem as divulgações científicas e as razões contra
a religião. A frase é esta, ou quási esta: que muito
mais longe está o homem superior (um Kant ou um
Goethe, creio que diz) do homem vulgar que o homem
vulgar do macaco. Nunca esqueci a frase porque ela
é verdadeira. Entre mim, que pouco sou na ordem
dos que pensam, e um camponês de Loures vai, sem
dúvida, maior distância que entre êsse camponês e,
já não digo um macaco, mas um gato ou um cão.
Nenhum de nós, desde o gato até mim, conduz de
facto a vida que lhe é imposta, ou o destino que lhe é
dado; todos somos igualmente derivados de não sei
quê, sombras de gestos feitos por outrém, efeitos encar-
nados, conseqüências que sentem. Mas entre mim e o
camponês há uma diferença de qualidade, proveniente
da existência em mim do pensamento abstracto e da
emoção desinteressada; e entre êle e o gato não há,
no espírito, mais que uma diferença de grau.

O homem superior difere do homem inferior, e dos
animais irmãos dêste, pela simples qualidade da ironia.
A ironia é o primeiro indício de que a consciência se
tornou consciente. E a ironia atravessa dois estádios:
o estádio marcado por Sócrates, quando disse "sei só
que nada sei", e o estádio marcado por Sanches,
quando disse "nem sei se nada sei". O primeiro passo
chega àquele ponto em que duvidamos de nós dogmà-
ticamente, e todo homem superior o dá e atinge. O
segundo passo chega àquele ponto em que duvidamos
de nós e da nossa dúvida, e poucos homens o têm
atingido na curta extensão já tão longa do tempo que,
humanidade, temos visto o sol e a noite sôbre a vária
superfície da terra.

Conhecer-se é errar, e o oráculo que disse "Co-
nhece-te" propôs uma tarefa maior que as de Hércules
e um enigma mais negro que o da Esfinge. Desco-
nhecer-se conscientemente, eis o caminho. E desco-
nhecer-se conscientemente é o emprêgo activo da iro-
nia. Nem conheço coisa maior, nem mais própria do
homem que é deveras grande, que a análise paciente
e expressiva dos modos de nos desconhecermos, o
registro consciente da inconsciência das nossas cons-
ciências, a metafísica das sombras autónomas, a poe-
sia do crepúsculo da desilusão.

Mas sempre qualquer coisa nos ilude, sempre
qualquer análise se nos embota, sempre a verdade,
ainda que falsa, está além da outra esquina. E é isto
que cansa mais que a vida, quando ela cansa, e de
que o conhecimento e meditação dela, que nunca dei-
xam de cansar.

Ergo-me da cadeira de onde, fincado distraìdamente
contra a mesa, me entretive a narrar para mim estas
impressões irregulares. Ergo-me, ergo o corpo nêle
mesmo, e vou até à janela, alta acima dos telhados,
de onde posso ver a cidade ir a dormir num comêço
lento de silêncio. A lua, grande e de um branco branco,
elucida tristemente as diferenças socalcadas da casaria.
E o luar parece iluminar àlgidamente todo o mistério
do mundo. Parece mostrar tudo, e tudo é sombras
com misturas de luz má, intervalos falsos, desnivela-
mentos absurdos, incoerências do visível. Não há
brisa, e parece que o mistério é maior. Tenho náu-
seas no pensamento abstracto. Nunca escreverei uma
página que me revele ou que revele alguma coisa.
Uma nuvem muito leve paira vaga acima da lua, como
um esconderijo. Ignoro, como êstes telhados. Falhei,
como a natureza inteira.

                  FERNANDO PESSOA