Ler o Escrever - Usa LdoD-Arquivo(203)

Cheguei hoje, de repente, a uma sensação




Cheguei hoje, de repente, a uma sensação absurda e
justa. Reparei, num relampago intimo, que não sou ninguem.
Ninguem, absolutamente ninguem. Quando brilhou o relampago,
aquillo onde suppuz uma cidade era um plaino deserto; e
a luz sinistra que me mostrou a mim não revelou céu acima
d'elle. Roubaram-me o poder ser antes que o mundo fôsse.
Se tive que reincarnar, reincarnei sem mim, sem ter eu rein-
carnado.

Sou os arredores de uma villa que não ha, o commenta-
rio prolixo a um livro que se não escreveu. Não sou nin-
guem, ninguem. Não sei sentir, não sei pensar, não sei que-
rer. Sou uma figura de romance por escrever, passando ae-
rea, e desfeita sem ter sido, entre os sonhos de quem me não
soube completar formular.

Penso sempre, sinto sempre; mas o meu pensamento não
contém raciocinios, a minha emoção não contém emoções. Es-
tou cahindo, depois do alçapão lá em cima, por todo o es-
paço infinito, numa queda sem direcção, infinitupla e
vazia. Minha alma é um maelstrom negro, vasta vertigem à
roda de vacuo, movimento de um oceano infinito em torno
de um buraco em nada, e nas aguas que são mais gyro que
aguas boiam todas as imagens do que vi e ouvi no mundo —
vão casas, caras, livros, caixotes, rastros de musica
e syllabas de vozes, num rodopio sinistro e sem fundo.

E eu, verdadeiramente eu, sou o centro que não ha nisto
senão por uma geometria do abysmo; sou o nada em torno do
qual este movimento gyra, só para que gyre, sem que esse
centro exista senão porque todo o circulo o tem. Eu, ver-
dadeiramente eu, sou o poço sem muros, mas com a viscosi-
dade dos muros, o centro de tudo com o nada à roda.

E é, em mim, como se o inferno elle-mesmo risse, sem
ao menos a humanidade de diabos a rirem, a loucura grasnada
do universo morto, o cadaver rodante do espaço physico,
o fim de todos os mundos fluctuando negro ao vento, dis-
forme, anachronico, sem Deus que o houvesse creado, sem
elle mesmo que está rodando nas trevas das trevas, impos-
sivel,, unico, tudo.

Poder saber pensar! Poder saber sentir!
                    1/12/1931

Minha mãe morreu muito cedo, e eu não a cheguei a
conhecer...