Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 5-15r-16r)

Cenotaphio


                        Cenotaphio

Nem viuva nem filho lhe poz na bocca o obulo, com que pagasse
a Charonte. São velados para nós os olhos com que transpoz a Styge
e viu nove vezes reflectido nas aguas inferas o rosto que não conhe-
cemos. Não tem nome entre nós a sombra agora errante nas margens dos
rios soturnos; o seu nome é sombra também.

Morreu pela Patria, sem saber como nem porquê. O seu sacrificio
teve a glória de não se conhecer. Deu a vida com toda a inteireza da
alma: por instincto, não por dever; por amor á Patria, não por
consciencia d'ella. Defendeu-a como quem defende uma mãe, de quem
somos filhos não por logica, senão por nascimento. Fiel ao segredo
primevo, não pensou nem quiz, mas viveu morreu a sua morte instinctivamen-
te, como havia vivido a sua vida. A sombra que usa agora se irmana
como as que cahiram em Thermopylas, fieis na carne ao juramento em que
haviam nascido.

Morreu pela Patria como o sol nasce todos os dias. Foi por na-
tureza o que a Morte havia de tornal-o.

Não cahiu servo de uma fé ardente, não o mattaram combatendo
pela baixeza de um grande ideal. Livre da injuria da fé e do insulto
do humanitarismo Livre da esperança vil em melhores dias para a humanidade, não cahiu em defensa de uma idéa politica, ou do
futuro da humanidade, ou de uma religião por haver. Longe da fé no
outro mundo, com que se enganam os credulos de Mahomet Christo e os sequazes
de Christo Roma, viu a morte chegar sem esperar nella a vida, viu a vida
passar sem que esperasse vida melhor.

Passou naturalmente, como o vento e o dia, levando comsigo a
alma, que o fizera differente. Mergulhou na sombra como quem entra
na porta onde chega. Morreu pela Patria, a unica cousa superior a
nós de que temos conhecimento e razão. O paraizo do mahometano ou
christão, o esquecimento transcendente do Buddhista não se lhe re-
flectiram nos olhos quando nelles se apagou a chamma, que o fazia
vivo na terra.


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Não soube quem foi, como não sabemos quem é. Cumpriu o dever sem sa-
ber o que cumpria. Guiou-o o que faz florir as rosas e ser bella triste a
morte das folhas. A vida não tem razão melhor, nem a morte melhor
galardão.

------- do heroismo simples, sem céu a ganhar pelo martyrio, ou
humanidade a salvar pelo exforço; da velha raça pagan que pertence
á Cidade e para fóra de quem estão os barbaros e os inimigos.

------- mas na emoção com que o filho quer á mãe, porque ella é
a sua mãe e não por elle ser seu filho (?)

Visita agora, conforme os deuses concedem, as regiões onde não ha
a luz, passando os lamentos de Cocyto e o fogo de Phlegethonte e
ouvindo na noite o lapso leve da livida onda lethéa.

Elle é anonymo como o instincto que o mattou. Não pensou que ia mor-
rer pela Patria; morreu por ella. Não determinou cumprir o seu de-
ver; cumpriu-o. A quem não teve nome na alma, justo é que não per-
guntemos que nome definiu o seu corpo. Foi portuguez; não sendo tal
portuguez, é o portuguez sem limitação.

O seu logar não é ao pé dos creadores de Portugal, cuja estatura é
outra, e outra a consciencia. Não lhe cabe a companhia dos semi-
deuses, por cuja audacia cresceram os caminhos do mar e houve mais
terra que caber no nosso alcance.

Nem estatua nem lapide narre quem foi o que foi todos nós; como é
todo o povo, deve ter por tumulo toda esta terra. Em sua propria me-
moria o devemos sepultar, e por lapide por-lhe o seu exe
mplo apenas.