Intertextualidade Filosófica - Usa (BNP/E3, 5-36r)

Quando nasceu a geração


L. do D.

      1st. article

Quando nasceu a geração, a que pertenço, encontrou o
mundo desprovido de apoios para quem tivesse cerebro, e ao
mesmo tempo coração. O trabalho destructivo das gerações
anteriores fizera que o mundo, para o qual nascemos, não ti-
vesse segurança que nos dar na ordem religiosa, esteio que
nos dar na ordem moral, tranquillidade que nos dar na ordem
politica. Nascemos já em plena angustia metaphysica, em
plena angustia moral, em pleno desasocego politico. Ebrias
das formulas externas, dos meros processos da razão e da
sciencia, as gerações, que nos precederam, alluiram todos
os fundamentos da fé christan, porque a sua critica
biblica, subindo de critica dos textos a critica mytholo-
gica, reduziu os evangelhos e a anterior hierographia dos
judeus a um amontoado incerto de mythos, de legendas e de
mera literatura; e a sua critica scientifica gradualmente
apontou os erros, as ingenuidades selvagens da "sciencia"
primitiva dos evangelhos; e, ao mesmo tempo, a liberdade
de discussão, que poz em praça todos os problemas metaphy-
sicos, arrastou com elles os problemas religiosos onde fos-
sem da metaphysica. Ebrias de uma cousa incerta, a que
chamaram "positividade", essas gerações criticaram toda a
moral, esquadrinharam todas as regras de viver, e, de tal
choque de doctrinas, só ficou a certeza de nenhuma, e a
dor de não haver essa certeza. Uma sociedade assim indis-
ciplinada nos seus fundamentos culturaes não podia, eviden-
temente ser senão victima, na política, d'essa indiscipli-
na; e assim foi que acordámos para um mundo avido de novi-
dades sociaes, e com alegria ia á conquista de uma liberda-
de que não sabia o que era, de um progresso que nunca de-
finira.

Mas o criticismo fruste dos nossos paes, se nos legou
a impossibilidade de ser christãos, não nos legou o conten-
tamento com que a tivessemos; se nos legou a des-
crença nas formulas moraes estabelecidas, não nos legou a
indifferença á moral e ás regras de viver humanamente; se
deixou incerto o problema politico, não deixou inddiferente
o nosso espirito a como esse problema se resolvesse. Nossos
paes destruiram contentemente, porque viviam numa epocha
que tinha ainda reflexos da solidez do passado. Era aquillo
mesmo que elles destruiam, que dava força á sociedade, para
que pudessem destruir sem sentir o edificio rachar-se. Nós
herdámos a destruição e os seus resultados.

Na vida de hoje, o mundo só pertence aos estupidos,
aos insensiveis e aos agitados. O direito a viver e a trium-
phar conquista-se hoje quasi pelos mesmos processos, por
que se conquista o internamento num manicomio: a incapaci-
dade de pensar, a amoralidade, e a hiperexcitação.