Café - Usa (BNP/E3, 5-42-43-44)

Eu nunca fiz senão sonhar


            L. do D.
  (our childhood's playing with cotton- reels, etc.)

Eu nunca fiz senão sonhar.
Tem sido esse, e esse apenas,
o sentido da minha vida. Nunca
tive outra preoccupação verdadeira
senão a minha vida o meu scenario interior. A As
maior maiores dôr da minha vida esbateu-se-me esbatem-se-me
quando, abrindo a janella para
dentro de mim [para a rua do
meu meus sonho devaneios] pude esquecer-me esqueço a vista
no na visão do
seu movimento.

Nunca pretendi ser senão um
sonhador. A quem me fallou de
viver nunca prestei attenção. Per-
tenci sempre ao que não está onde
estou e ao que nunca pude ser.
Tudo o que não é meu, por baixo
que seja, teve sempre poesia para
mim. Nunca amei senão cousa
nenhuma. Nunca Jamais desejei quiz senão o
que nem podia imaginar. Á vida nunca
pedi senão que passasse
por mim sem que eu a sentisse. Do
amor apenas exigi que nunca deixasse
de ser um sonho longinquo. Nas
minhas proprias paysagens interiores,
irreaes todas ellas, foi sempre o lon-
ginquo que me attrahiu, e os
aqueductos que se esfumavam quasi
na distancia das minhas paysagens sonhadas,
tinham uma doçura de
sonho em relação ás outras partes
da paysagem — uma doçura que
fazia com que eu as pudesse amar.


A minha mania de crear um
mundo falso acompanha-me ainda,
e só na minha morte me abandonará.
Não alinho hoje nas minhas ga-
vetas carros de linha retroz e peões
de xadrez — com um bispo ou um cavallo
accaso sobressahindo — mas tenho pena
de o não fazer... e alinho na
minha imaginação, confortavel-
mente, como quem no inverno se
aquece a uma lareira, figuras
que habitam, e são constantes
e vivas, na minha vida interior.
Tenho um mundo de amigos
dentro de mim, com vidas proprias,
reaes, definidas e imperfeitas.

Alguns passam difficuldades,
outros teem uma vida bohemia,
pittoresca e humilde. Ha
outros que são caixeiros-viajantes
(poder sonhar-me caixeiro-viajante
foi sempre uma das minhas grandes
ambições — irrealizavel infelizmente!).
Outros moram em aldeias e villas lá
para as fronteiras de um Portugal
dentro de mim; veem á cidade, onde por
accaso os encontro e reconheço, a-
brindo-lhes os braços, n'uma atracção emotivamente...
E quando sonho isto, passeando no
meu quarto, fallando alto, gesticulando...
quando sonho isto, e me visiono en-
contrando-os, todo eu me alegro, me
realizo, me pulo, brilham-me os
olhos, abro os braços e tenho uma
felicidade enorme clara, real incomparavel.


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Ah, não ha saudades mais dolorosas
do que as das cousas que nunca fôram!
O que eu sinto quando penso no
passado que tive no tempo real,
quando chóro sobre o cadaver da
vida da minha infancia ida,... isso
mesmo não attinge o fervor doloroso
e trémulo com que chóro
sobre não serem reaes as figuras
humildes dos meus sonhos, as
proprias figuras secundarias que me
recordo de ter visto uma só
vez, por accaso, na minha pseudo-
vida, ao virar uma esquina
da minha visionação, ao passar
por um portão n'uma rua que
subi e percorri por esse sonho
fóra.

A raiva de a saudade não
poder reavivar e reerguer nunca
é tão lacrimosa contra Deus, que
creou impossibilidades, do que
quando medito que os meus amigos
de sonho, com quem passei tantos detalhes
de uma vida supposta, com quem tantas
conversas illuminadas, em cafés
imaginarios, tenho tido, não pertence-
ram, afinal, a nenhum espaço
onde pudessem ser, realmente,
independentes da minha consciencia d'elles!

Oh, o passado morto que eu trago
commigo e nunca esteve senão
commigo! As flores do jardim


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da pequena casa de campo e
que nunca existiu senão
em mim. As hortas, os pomares,
o pinhal, da quinta que foi
só um meu sonho! As minhas
villegiaturas suppostas, os
meus passeios por um campo que
nunca existiu! As arvores de
á beira da estrada, os atalhos,
as pedras, os camponezes que passam...
tudo isto, que nunca passou de um
sonho, está gravado na minha memoria
a fazer de dôr e eu, que passei
horas a sonhal-os, passo horas
depois a recordar tel-os sonhado
e é na verdade saudade que eu tenho,
um passado que eu chóro, uma
vida-real que fito, solemne
no seu caixão.

Ha tambem as paysagens e
as vidas que não foram inteiramente in-
teriores. Certos quadros, sem sombra
de relevo artistico, certas oleogravuras
que havia em paredes com que convivi
muitas horas — passam a realidade
dentro de mim. Aqui a sensação
era outra, mais pungente e
triste. Ardia-me não poder estar
alli, quer elles fôssem reaes ou
não. Não ser eu, ao menos, uma
figura a mais desenhada ao pé d'a-
quelle
bosque, ao luar que havia n'uma


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pequena gravura d'um quarto onde
dormi já não em pequeno! Não
poder eu pensar que estava
alli occulto, no bosque á
beira do rio, por aquelle luar
eterno (embora mal-desenhado),
vendo o homem que passa n'um barco
por baixo do debruçar -se
de um salgueiro! Aqui o
não poder sonhar inteiramente
doía-me. As feições da minha
saudade eram outras. Os gestos
do meu desespero eram differentes.
A impossibilidade que me torturava
era de outra ordem de angustia.
Ah, não ter tudo isto um
sentido em Deus, uma
realização conforme o espirito
de meus desejos, não sei onde,
por um tempo vertical,
consubstanciado com a di-
recção das minhas saudades e
dos meus devaneios! Não haver,
pelo menos só para mim, um
paraiso feito d'isto! Não
poder eu encontrar os amigos
que sonhei, passear pelas ruas
que criei, accordar, entre o ruido
dos galos e das gallinhas e o
rumorejar matutino
da casa, na casa de campo em que
eu me suppuz... e tudo isto
mais perfeitamente arranjado por Deus,
posto n'aquella perfeita ordem para
existir, na precisa fórma
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para eu o ter que nem os
meus proprios sonhos attingem
senão na falta de uma
dimensão do espaço intimo que
entretem essas pobres realidades...

Ergo a cabeça de sobre o papel
em que escrevo... É cedo ainda.
Mal passa o meio-dia e é
domingo. O mal da vida, a
doença de ser consciente, entra
em o meu proprio corpo e
perturba-me. Não haver
ilhas para os inconfortaveis,
alamedas vetustas, inencontraveis
de outros, para os isolados
no sonhar! Ter de viver e,
por pouco que seja, de agir; ter de
roçar pelo facto de haver outra
gente, real tambem, na vida!
Ter de estar aqui escrevendo
isto, por me ser preciso á alma
fazel-o e, mesmo isto, não poder sonhal-o apenas,
exprimil'-o sem palavras,
sem consciencia mesmo, por uma
construção de mim-proprio em
musica e esbatimento, de
modo que me subissem as lagrimas
aos olhos só de me sentir ex-
pressar-me, e eu fluisse, como
um rio encantado, por
lentos declives de mim-proprio, cada
vez mais para o inconsciente e o
Distante, sem sentido nenhum excepto
Deus.
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