Mallet - Usa Jerónimo Pizarro(158)

O Rio da Posse


L. do D.

O Rio da Posse

Que somos todos differentes, é um axioma da nossa humanidade. Só nos parecemos de longe, na proporção, portanto, em que não somos nós. A vida é, porisso, para os indefinidos; só podem conviver os que nunca se definem, e são, um e outro, ninguem.

Cada um de nós é dois, e quando duas pessoas se encontram, se approximam, se ligam, é raro que as quatro possam estar de accordo. O homem que sonha em cada homem /que age/, se tantas vezes se /malquista/ com o homem que age, como não se malquistará com /o homem que age e o homem que sonha no Outro/.

Somos forças porque somos vidas. Cada um de nós tende para si-proprio atravez dos outros. Se temos por nós mesmos o respeito de nos acharmos interessantes, ☐. Toda a approximação é um conflicto. O outro é sempre o obstaculo para quem procura. Só quem não procura é feliz; porque só quem não busca, encontra, visto que quem não procura já tem, e já ter, seja o que fôr, é ser feliz /como não pensar é a parte mais feliz, de ser rico./

Olho para ti, dentro de mim, noiva supposta, e já nos /desavimos/ antes de existires. O meu habito de sonhar claro dá-me uma noção justa da realidade. Quem sonha de mais precisa de dar realidade ao sonho. Quem dá realidade ao sonho tem que dar ao sonho o equilibrio da realidade. Quem dá ao sonho o equilibrio da realidade, soffre da realidade de sonhar tanto como da realidade da vida /e do irreal do sonho como do sentir a vida irreal/.

Estou-te esperando, em devaneio, no nosso quarto com duas portas, e sonho-te vindo e no meu sonho entras até mim pela porta da direita; se, quando entras, entras pela porta da esquerda, ha já uma differença entre ti e o meu sonho. Toda a tragedia humana está neste pequeno exemplo de como aqueles em quem pensamos nunca são aquelles em quem pensamos.

O amôr pede identidade com differença, o que é impossivel já na logica, quanto mais no mundo. O amor quer possuir, quer tornar seu o que tem de ficar fóra para elle saber que se torna d'elle e não é elle. Amar é entregar-se. Quanto maior a entrega, maior o amor. Mas a entrega total entrega tambem a consciencia do outro. O amor maior é porisso a morte, ou o esquecimento, ou a renuncia — os amores todos que são os abominando/s/ do amor.

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No terraço antigo do palacio, alçado sobre o mar, meditavamos em silencio a differença entre nós. Eu era principe e tu princesa, no terraço á beira do mar. O nosso amor nascera do nosso encontro, como a belleza se criara do encontro da lua com as aguas.
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O amor quer a posse, mas não sabe o que é a posse. Se eu não sou meu, como serei teu, ou tu minha? Se não possuo o meu proprio ser, como possuirei um ser alheio? Se sou já differente d'aquelle com quem sou identico, como serei identico d'aquelle de quem sou differente.

O amor é um mysticismo que quer praticar-se, uma impossibilidade que só é sonhada como devendo ser possivel.

Metaphysico. Mas toda a vida é uma metaphysica ás escuras, com um rumor de deuses e o desconhecimento da via como unica via.

A peor astucia commigo da minha /decadencia/ é o meu amor á saude e á claridade. Achei sempre que um corpo bello e o rhythmo feliz de um andar jovem tinham mais competencia no mundo que todos os sonhos que ha em mim. É com uma alegria da velhice pelo espirito que sigo ás vezes — sem inveja nem desejo — os pares casuaes que a tarde junta e caminham braço com braço para a consciencia /transbordante/ da juventude. Goso-os como goso uma verdade, sem que pense se me diz ou não respeito. Se os comparo a mim, continuo gosando-os, mas como quem gosa uma verdade que o fére, juntando á dor da ferida o balsamo de ter comprehendido os deuses.

Sou o contrario dos platonicos /symbolistas/, para quem todo o ser, e todo o acontecimento, é a sombra de uma realidade de que é a sombra apenas. Cada cousa, para mim, é, em vez de um ponto de chegada, um ponto de partida. Para o occultista tudo acaba em tudo; tudo começa em tudo para mim.

Procedo, como elles, por analogia e suggestão, mas o jardim pequeno que lhes suggere a ordem e a belleza da alma, a mim não lembra mais que o jardim maior onde possa ser, longe dos homens, feliz a vida que o não pode ser. Cada cousa suggere-me não a realidade de que é a sombra, mas a realidade para que é o caminho.

O jardim da Estrella, á tarde, é para mim a suggestão de um parque antigo, no seculo anterior do desencanto da alma.