Não tendo o que fazer (BNP/E3, 3-12r) - Usa (BNP/E3, 2-45)

Espaçado, um vagalume vae succedendo


L. do D.

Espaçado, um vagalume vae succedendo(-se) a si-
mesmo. (Espaçado, o pestanejar azul branco brancazul branco escuro de um vagalu-
me vae succedendo-se a si mesmo.)
. Em torno, obscuro, o campo é uma grande
falta de ruido que cheira quasi bem. A paz de tudo doe
e pesa. Um tedio informe afoga-me.

Poucas vezes vou ao campo, quasi nenhumas alli
passo um dia, ou de um dia para outro. Mas hoje, que
este amigo, em cuja casa estou, me não deixou
não acceitar o seu convite, vim para aqui cheio de con-
strangimento — como um timido para uma festa grande —,
cheguei aqui com alegria, gostei do ar e da paisagem ampla,
almocei e jantei bem, e agora, noite funda, no
meu quarto sem luz, o logar vago incerto enche-me de angustia.

A janella do quarto onde dormirei deita para o
campo aberto, para um campo vasto indefinido, que é todos os
campos, para a grande noite vagamente constellada onde
uma aragem que se não ouve se sente. Sentado á janella,
contemplo com os sentidos todos esta coisa nenhuma da
vida universal que está lá fóra. A hora harmoniza -se numa
sensação inquieta, desde a invisibilidade visivel de
tudo até á madeira vagamente rugosa de ter estalado a
tinta velha do parapeito branquejante onde está estendidamente apoiada
de lado a minha mão esquerda.

Quantas vezes, comtudo, não anceio
visualmente por esta paz de onde quasi fugiria agora, se
fosse fácil ou decente! Quantas vezes julgo crer — lá em
baixo, entre as ruas estreitas de casas altas — que a
paz, a prosa, o definitivo estariam antes aqui, entre
as coisas naturaes, que alli onde o panno de
mesa da civilização faz esquecer o
pinho pintado em que assenta! E, agora, aqui sentindo-
me saudavel, cansado a bem, estou intranquillo, estou
preso, estou saudoso.

Não sei se é a mim que acontece, se a todos os
que a civilização fez nascer segunda vez. Mas
parece-me que para mim, ou para os que sentem como eu,
o artificial passou a ser o natural, e é o natural que
é extranho. Não digo bem: o artificial não passou a ser
o natural; o natural passou a ser differente. Dispenso
e detesto vehiculos, dispenso e detesto os productos
da sciencia — telephones, telegraphos — que tornam a
vida facil, ou os sub-productos da fantasia — gramo-
phonographos, receptores hertzianos —
que, aos a quem divertem, a tornam divertida.


Nada d'isso me interessa, nada d'isso desejo. Mas amo
o Tejo porque ha uma cidade grande á beira d'elle. Goso
o ceu porque o vejo de um quarto andar de rua da Baixa.
Nada o campo ou a natureza me pode dar que valha a ma-
jestade irregular da cidade tranquilla, sob o luar,
vista da Graça ou de S. Pedro de Alcantara. Não ha para
mim flores como, sob o sol, o colorido variadissimo de
Lisboa.

A belleza de um corpo nu, só o sentem
as raças vestidas. O pudor vale sobretudo
para a sensualidade, como o obstaculo
para a energia.
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A artificialidade é a maneira de gosar
a naturalidade. O que gosei d'estes campos
vastos, gosei-o porque aqui não vivo. Não
sente a liberdade quem nunca viveu
constrangido.

A civilização é uma educação de em natureza.
O artificial é o caminho para uma
apreciação do natural.

O que é preciso, porém, é que nun-
ca tomemos o artificial por natural.
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É na harmonia entre o natural e o
artificial que consiste a naturalidade
da alma humana superior.