Leitura Crítica 2 - Usa (BNP/E3, 7-35-36)

Segunda parte | Em mim o que ha de primordial


L. do D.

                  Segunda parte.

Em mim o que ha de primordial é o habito
e o geito de sonhar. As circumstancias da minha
vida, desde creança sósinho e calmo, outras for-
ças talvez, amoldando-me, de longe, por heredi-
tariedades obscuras a seu sinistro corte, fize-
ram do meu espirito uma constante corrente de
devaneios. Tudo o que eu sou está n'isto, e mes-
mo aquillo que em mim mais parece longe de des-
tacar o sonhador, pertence sem escrupulo á alma
de quem só sonha, levada ella ao seu maior grau.

Quero, para meu proprio gosto de analysar-
me, ir, á medida que a isso me ageite, ir pondo
em palavras os processos mentaes que em mim são
um só, esse, o de uma vida devotada ao sonho,
de uma alma educada só em sonhar.

Vendo-me de fóra, como quasi sempre
me vejo, eu sou um inapto á acção, perturbado
ante ter que dar passos e fazer gestos, inha-
bil para fallar com os outros, sem lucidez in-
terior para me entreter com o que me cause es-
forço ao espirito, nem sequencia physica para
me aplicar a qualquér mero mechanismo de entre-
tenimento trabalhando.

Isso é natural que eu seja. O sonhador
entende-se que seja assim. Toda a realidade me
perturba. A falla dos outros lança-me numa an-
gustia enorme. A realidade das outras almas
surprehende-me constantemente. A vasta rêde de
inconsciencias que é toda a acção que eu vejo,
parece-me uma illusão absurda, sem coherencia
plausivel, nada.

Mas se se julgar que desconheço os trami-
tes da psychologia alheia, que erro a percep-
ção nitida dos motivos e dos intimos pensamen-
tos dos outros, haverá engano sobre o que sou.

Porque eu não só sou um sonhador, mas sou
um sonhador exclusivamente. O habito unico de
sonhar deu-me uma extraordinaria nitidez de
visão interior. Não só vejo com espantoso e
ás vezes perturbante relevo as figuras e os
décors dos meus sonhos, mas com egual relevo


vejo as minhas idéas abstractas, os meus sentimen-
tos humanos — o que delles me resta —, os meus
secretos impulsos, as minhas attitudes psychicas
deante de mim proprio. Affirmo que as minhas pro-
prias idéas abstractas, eu as vejo em mim, eu
com uma interior visão real as vejo num espaço
interno. E assim os seus meandros são me visiveis
nos seus minimos.

Porisso, conheço-me inteiramente, e, atravez
de conhecer-me inteiramente, conheço inteiramen-
te a humanidade toda. Não ha baixo impulso, como
não ha nobre intuito que me não tenha sido re-
lampago na alma; e eu sei com que gestos cada
um se mostra. Sob as mascaras que as más idéas
usam, de boas ou indifferentes, mesmo dentro de
nós eu pelos gestos as conheço por quem são.
Sei o que em nós se esforça por nos illudir.
E assim á maioria das pessoas que vejo conheço
melhor do que elles a si proprios. Applico-me
muitas vezes a sondal-os, por que assim os
torno meus. Conquisto o psychismo que explico,
porque para mim sonhar é possuir. E assim se
vê como é natural que eu, sonhador que sou, seja
o analytico que me reconheço.

Entre as poucas cousas que ás vezes me apraz
lêr, destaco, porisso, as peças de theatro. Todos
os dias se passam peças em mim, e eu conheço a
fundo como é que se projecta uma alma na
projecção de Mercator, planamente. Entretenho-me
pouco, aliás, com isto; tão constantes, vulgares
e enormes são os erros dos dramaturgos. Nunca
nenhum drama me contentou. Conhecendo a psycho-
logia humana com uma nitidez de relampago, que
sonda todos os recantos com um só olhar, a gros-
seira analyse e construcção dos dramatistas fere-
me, e o pouco que leio neste genero desgosta-me
como um borrão de tinta atravessado acontecido na escripta.



As cousas são a materia para os meus sonhos; por-
isso applico uma atenção distrahidamente sobre-
attenta a certos detalhes do Exterior.


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Para dar relevo aos meus sonhos preciso conhe-
cer como é que as paysagens reaes e as persona-
gens da vida nos aparecem relêvadas. Porque a
visão do sonhador não é como a visão do que vê
as cousas. No sonho, não ha o assentar da vista
sobre o importante e o inimportante de um objec-
to que ha na realidade. Só o importante é que o
sonhador vê. A realidade verdadeira dum objecto
é apenas parte delle; o resto é o pesado tribu-
to que elle paga á materia em troca de existir
no espaço. Semelhantemente, não ha no espaço
realidade para certos phenomenos que no sonho
são palpavelmente reaes. Um poente real é impon-
deravel e transitorio. Um poente de sonho é fi-
xo e eterno. Quem sabe escrever é o que sabe
vêr os seus sonhos nitidamente (e é assim) ou
ver em sonho a vida, vêr a vida immaterialmente,
tirando-lhe photographias com a machina do de-
vaneio, sobre a qual os raios do pesado, do util
e do circumscripto não teem acção, dando negro
na chapa espiritual.

Em mim esta attitude, que o muito sonhar me
enkystou, faz-me vêr sempre da realidade a parte
que é sonho. A minha visão das cousas supprime
sempre nellas o que o meu sonho não pode utili-
sar. Assim vivo sempre em sonhos, mesmo quando
vivo na vida. Olhar para um poente em mim ou
para um poente no Esterior é para mim a mesma
cousa, porque vejo da mesma maneira, pois que
a minha visão é talhada mesmamente.

Porisso a idéa que faço de mim é uma idéa
que a muitos parecerá errada. De certo modo é
errada. Mas eu sonho-me a mim proprio e de mim
escolho o que é sonhavel, compondo-me e recom-
pondo-me de todas as maneiras até estar bem
perante o que exijo do que sou e não sou. Ás
vezes o melhor modo de vêr um objecto é annu-
lal-o, mas elle subsiste não sei explicar como,
feito de materia de negação e annulamento; assim
faço a grandes espaços reaes do meu ser, que,
supprimidos no meu quadro de mim, me transfiguram
para a minha realidade.

Como então me não engano sobre os meus inti-
mos processos de illusão de mim? Porque o proces-
so que arranca para uma realidade mais que real


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um aspecto do mundo ou uma figura de sonho,
arranca tambem para mais que real uma emo-
ção ou um pensamento; despe-o portanto de
todo o apetrecho de nobre ou puro quando,
o que quasi sempre acontece, o não é. Re-
pare-se que a minha objectividade é absoluta,
a mais absoluta de todas. Eu crio o objecto
absoluto, com qualidades de absoluto no seu
concreto. Eu não fugi á vida propriamente, no
sentido de procurar para a minha alma uma cama
mais suave, apenas mudei de vida e encon-
trei nos meus sonhos a mesma objectividade que
encontrava na vida. Os meus sonhos — n'outra
pagina estudo isto — erguem-se independentes da
minha vontade e muitas vezes me chocam e me fe-
rem. Muitas vezes o que descubro em mim me deso-
la, me envergonha (talvez, por um resto de humano
em mim — o que é a vergonha?) e me assusta.

Em mim o devaneio ininterrupto substituiu a
attenção. Passei a sobrepôr ás cousas vis-
tas, mesmo quando já sonhadamente vistas, outros
sonhos que commigo trago. Desattento já sufficien-
temente para fazer bem aquillo a que chamei ver
as cousas em sonho, ainda assim, porque essa desa-
ttenção era motivada por um perpetuo devaneio e
uma, tambem não exaggeradamente attenta, preocu-
pação com o decurso dos meus sonhos, sobreponho
o que sonho ao sonho que vejo e intersecciono a
realidade já despida da materia com um imma-
terial absoluto.

D'ahi a habilidade que adquiri em seguir varias
idéas ao mesmo tempo, observar as cousas e ao
mesmo tempo sonhar assumptos muito diversos, estar
ao mesmo tempo sonhando um poente real sobre o
Tejo real e uma manhã sonhada sobre um Pacifico
interior; e as duas cousas sonhadas intercalam-se
uma na outra, sem se misturar, sem propriamente
confundir mais do que o estado emotivo diverso
que cada um provoca, e sou como alguem que visse
passar na rua muita gente e simultaneamente sentis
se de dentro as almas de todos — o que teria que
fazer n'uma unidade de sensação — ao mesmo tempo
que via os varios corpos — esse tinha que os ver
diversos — cruzar-se na rua cheia de movimentos
de pernas.


Lisboa, 31 de Outubro de 1914
O III ESD