Fluido, ausente, inessencial, perco-me de mim


Fluido, ausente, inessencial, perco-me de mim como se me afogasse em nada; sou transacto, e esta palavra, que fala e pára, diz, tem tudo.

O ritmo da palavra, a imagem que evoca, e o seu sentido como ideia, juntos necessariamente em qualquer palavra, são por si juntos com separação. Só de pensar uma palavra eu compreenderia o conceito de Trindade.

Penso a palavra "inúmera" e escolho-a para exemplo porque é abstracta e escusa. Mas se a oiço, no meu ser rolam grandes ondas em som que vão para o mar sem fim; constelam-se os céus, e não é de estrelas, mas da música de todas as ondas que os céus se constelam, e a ideia de um infinito decorrente abre-se-me, como uma bandeira desfraldada, de estrelas ou som do mar, e como um único céu que reflecte todas as estrelas.


Título: Fluido, ausente, inessencial, perco-me de mim
Heterónimo: Bernardo Soares
Número: 434
Página: 356
Nota: [28-27, ms.];