Edição RZ - Usa Richard Zenith(495)

MANEIRA DE BEM SONHAR NOS METAFÍSICOS


Raciocínio, ☐ — tudo será fácil e ☐, porque é tudo para mim sonho. Mando-me sonhá-lo e sonho-o. Às vezes crio em mim um filósofo, que me traça cuidadosamente as filosofias enquanto eu, pagão ☐, namoro a filha dele, cuja alma sou, à janela da sua casa.

Limitam-me, é claro, os meus conhecimentos. Não posso criar um matemático... Mas contento-me com o que tenho, que dá para combinações infinitas e sonhos sem número. Quem sabe, de resto, se à força de sonhar, eu não conseguirei ainda mais... Mas não vale a pena. Basto-me assim.

Pulverização da personalidade: não sei quais são as minhas ideias, nem os meus sentimentos, nem o meu carácter... Se sinto uma coisa, vagamente a sinto na pessoa visualizada de uma qualquer criatura que aparece em mim. Substituí os meus sonhos a mim próprio. Cada pessoa é apenas o seu sonho de si próprio. Eu nem isso sou.

Nunca ler um livro até ao fim, nem lê-lo a seguir e sem saltar.

Não soube nunca o que sentia. Quando me falavam de tal ou tal emoção e a descreviam, sempre senti que descreviam qualquer coisa da minha alma, mas, depois, pensando, duvidei sempre. O que me sinto ser, nunca sei se o sou realmente, ou se julgo que o sou apenas. Sou bocados de personagens de dramas meus.

O esforço é inútil, mas entretém. O raciocínio é estéril, mas é engraçado. Amar é maçador, mas é talvez preferível a não amar. O sonho, porém, substitui tudo. Nele pode haver toda a noção do esforço sem o esforço real. Dentro do sonho posso entrar em batalhas sem risco de ter medo ou de ser ferido. Posso raciocinar, sem que tenha em vista chegar a uma verdade, a que me doa que nunca chego; sem querer resolver um problema, que veja [que] nunca resolvo; sem que ☐. Posso amar sem [que] me recusem ou me traiam, ou me aborreçam. Posso mudar de amada e ela será sempre a mesma. E se quiser que me traia e se me esquive, tenho às ordens que isso me aconteça, e sempre como eu quero, sempre como eu o gozo. Em sonho posso viver as maiores angústias, as maiores torturas, as maiores vitórias. Posso viver tudo isso tal como se fora da vida: depende apenas do meu poder em tornar o sonho vívido, nítido, real. Isso exige estudo e paciência interior.

Há várias maneiras de sonhar. Uma é abandonar-se aos sonhos, sem procurar torná-los nítidos, deixar-se ir no vago e no crepúsculo das suas sensações. É inferior e cansa, porque esse modo de sonhar é monótono, sempre o mesmo. Há o sonho nítido e dirigido, mas aí o esforço em dirigir o sonho trai o artifício demasiadamente. O artista supremo, o sonhador como eu o sou, tem só o esforço de querer que o sonho seja tal, que tome tais caprichos... e ele desenrola-se diante dele assim como ele o desejaria, mas não poderia conceber, se fatigaria de fazê-lo. Quero sonhar-me rei... Num acto brusco, quero-o. E eis-me súbito rei dum país qualquer. Qual, de que espécie, o sonho mo dirá... Porque eu cheguei a esta vitória sobre o que sonho — que os meus sonhos trazem-me sempre inesperadamente o que eu quero. Muitas vezes aperfeiçoam, ao trazê-la nítida, a ideia cuja vaga ordem apenas receberam. Eu sou totalmente incapaz de idear conscientemente as Idades Médias de diversos espaços e de diversas Terras que tenho vivido em sonhos. Deslumbra-me o excesso de imaginação que desconhecia em mim e vou vendo. Deixo os sonhos ir... Tenho-os tão puros que eles excedem sempre o que eu espero deles. São sempre mais belos do que eu quero. Mas isto só o sonhador aperfeiçoado pode esperar obter. Tenho levado anos a buscar sonhadoramente isto. Hoje consigo-o sem esforço...

A melhor maneira de começar a sonhar é mediante livros. Os romances servem de muito para o principiante. Aprender a entregar-se totalmente à leitura, a viver absolutamente com as personagens de um romance, e eis o primeiro passo. Que a nossa família e as suas mágoas nos pareçam chilras e nojentas ao lado dessas, eis o sinal do progresso.

É preciso evitar o ler romances literários onde a atenção seja desviada para a forma do romance. Não tenho vergonha em confessar que assim comecei. É curioso mas os romances policiais, os ☐ é que por uma ☐ intuição eu lia. Nunca pude ler romances amorosos detidamente. Mas isso é uma questão pessoal, por não ter feitio de amoroso, nem mesmo em sonhos. Cada qual cultive, porém, o feitio que tiver. Recordemo-nos sempre de que sonhar é procurarmo-nos. O sensual deverá, para suas leituras, escolher as opostas às que foram as minhas.

Quando a sensação física chega, pode dizer-se que o sonhador passou além do primeiro grau do sonho. Isto é, quando um romance sobre combates, fugas, batalhas, nos deixa o corpo realmente moído, as pernas cansadas... o primeiro grau está assegurado. No caso do sensual, deverá ele — sem nenhuma masturbação mais que mental — ter uma ejaculação quando um momento desses chegar no romance.

Depois procurará traduzir tudo isso para mental. A ejaculação, no caso do sensual (que escolho para exemplo, porque é o mais violento e frisante) deverá ser sentida sem se ter dado. O cansaço será muito maior, mas o prazer é completamente mais intenso.

No terceiro grau passa toda a sensação a ser mental. Aumenta o prazer e aumenta o cansaço, mas o corpo já nada sente, e em vez dos membros lassos, a inteligência, a ideia e a emoção é que ficam bambas e frouxas... Chegado aqui é tempo de passar para o grau supremo do sonho.

O segundo grau é o construir romances para si próprio. Só deve tentar-se isto quando se está perfeitamente mentalizado o sonho, como antes disse. Se não, o esforço inicial em criar os romances, perturbará a perfeita mentalização do gozo.

Terceiro grau.

Já educada a imaginação, basta querer, e ela se encarregará de construir os sonhos por si.

Já aqui o cansaço é quase nulo, mesmo mental. Há uma dissolução absoluta da personalidade. Somos mera cinza, dotada de alma, sem forma — nem mesmo a da água, que é a da vasilha que a contém.

Bem aprontada esta ☐, dramas podem aparecer em nós, verso a verso, desenrolando-se alheios e perfeitos. Talvez já não haja a força de os escrevermos — nem isso será preciso. Poderemos criar em segunda mão — imaginar em nós um poeta a escrever, e ele escreverá de uma maneira, outro poeta acaso escreverá de outra... Eu, em virtude de ter apurado imenso esta faculdade, posso escrever de inúmeras maneiras diversas, originais todas.

O mais alto grau do sonho é quando, criado um quadro com personagens, vivemos todas elas ao mesmo tempo — somos todas essas almas conjunta e interactivamente. É incrível o grau de despersonalização e de encinzamento do espírito a que isto leva, e é difícil, confesso-o, fugir a um cansaço geral de todo o ser ao fazê-lo... Mas o triunfo é tal!

Este é o único ascetismo possível. Não há nele fé, nem um Deus.

Deus sou eu.