(a)notações gráficas - Usa Jerónimo Pizarro(54)

[Maneira de Bem Sonhar nos Metaphysicos]


Raciocinio, ☐ — tudo será facil e ☐, porque é tudo para mim sonho. Mando-me sonhal-o e sonho-o. Ás vezes crio em mim um philosopho, que me traça cuidadosamente as philosophias emquanto eu, pagem ☐, namoro a filha d'elle — cuja alma goso — á janella da sua casa.

Limitam-me, é claro, os meus conhecimentos. Não posso criar um mathematico... Mas contento-me com o que tenho, que dá para combinações infinitas e sonhos sem numero. Quem sabe, de resto, se á força de sonhar, eu não conseguirei ainda mais... Mas não vale a pena. Basto-me assim.

Pulverização da personalidade: não sei quaes são as m[inhas] idéas, nem os m[eus] sentimentos nem o meu caracter... Se sinto uma cousa, enq[uan]to a sinto na pessoa visualizada de uma qualquér criatura que apparece em mim. Substitui os meus sonhos a mim-proprio. Cada pessôa é apenas o seu sonho de si-proprio. Eu nem isso sou.

Nunca lêr um livro até ao fim, nem lêl-lo a seguir e sem saltar.

Não soube nunca o que sentia. Quando me fallavam de tal ou tal emoção e a descreviam, sempre senti que descreviam qualquer cousa da m[inha] alma, mas, depois, pensando, duvidei sempre. O que me sinto ser, nunca sei se o sou realmente, ou se julgo que o sou apenas. / Sou bocados de personagens de dramas meus /.

O esforço é inutil mas entretem. O raciocinio é esteril, mas é engraçado. Amar é maçador, mas é talvez preferivel a não amar. (O sonho, porém, substitue tudo.) N'elle pode haver toda a noção do esforço sem o esforço real. Dentro do sonho posso entrar em batalhas sem risco de ter medo ou de ser ferido. Posso raciocinar, sem que tenha em vista chegar a uma verdade, a que me dôa que nunca chegue; sem querer resolver um problema, que veja [que] nunca resolvo; sem que ☐. Posso amar sem [que] me recusem ou me traiam, ou me aborreçam. Posso mudar de amada e ella será sempre a mesma. E se quizer que me traia e se me esquive, tenho ás ordens que isso me aconteça, e sempre como eu quero, sempre como eu o góso. Em sonho posso viver as maiores angustias, as maiores torturas, as maiores victorias. Posso viver tudo isso tal como se fôra da vida; depende apenas do meu poder em tornar o sonho vivido, nitido, real. Isso exige estudo e paciencia interior.

Ha varias maneiras de sonhar. Uma é abandonar-se aos sonhos, sem procurar tornal-os nitidos, deixar-se ir no vago e no crepusculo das suas sensações. É inferior e cança, porque esse modo de sonhar é monótono, sempre o mesmo. Ha o sonho nitido e dirigido, mas ahi o esforço em dirigir o sonho trahe o artificio demasiadamente. O artista supremo, o sonhador como eu o sou, tem só o esforço de querer que o sonho seja tal, que tome taes caprichos... e elle desenrola-se deante d'elle assim como elle o desejaria, mas não poderia conceber, se fatigaria de fazel-o. Quero sonhar-me rei... N'um acto brusco, quero-o. E eis-me subito rei d'um paiz qualquer. Qual, de que especie, o sonho m'o dirá... Porque eu cheguei a esta victoria sobre o que sonho — que os meus sonhos trazem-me sempre inesperadamente o que eu quero. Muitas vezes aperfeiçoam, ao trazel-a nitida, a idea cuja vaga ordem apenas receberam. Eu sou totalmente incapaz de idear conscientemente as Edades Medias de diversas epocas e de diversas Terras que tenho vivido em sonhos. Deslumbra-me o excesso de imaginação que desconhecia em mim e vou vendo. Deixo os sonhos ir... Tenho-os tão presos que elles excedem sempre o que eu espero d'elles. São sempre mais bellos do que eu quero. Mas isto só o sonhador aperfeiçoado pode esperar obter. Tenho levado annos a buscar sonhadoramente isto. Hoje consigo-o sem esforço...
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A melhor maneira de começar a sonhar é mediante livros. Os romances servem de muito para o principiante. Aprender a entregar-se totalmente á leitura, a viver absolutamente com as personagens de um romance, e eis o 1º passo. Que a n[ossa] familia e as suas maguas nos pareçam chilras e nojentas ao lado d'essas, eis o signal do progresso.

É preciso evitar o lêr romances literarios onde a attenção seja desviada para a fórma do romance. □ Não tenho vergonha em confessar que assim comecei. É curioso mas os romances policiaes, os ☐ é que por uma ☐ intuição eu lia.

Nunca pude lêr romances amorosos detidamente. Mas isso é uma questão pessoal, por não ter feitio de amoroso, nem mesmo em sonhos. Cada qual cultive, porém, o feitio que tivér. Recordemo-nos sempre de que sonhar é procurarmo-nos. O sensual deverá, para suas leituras, escolher as oppostas ás que fôram as minhas.

Quando a sensação physica chega, pode dizer-se que o sonhador passou além do 1º grau do sonho. Isto é, q[uan]do um romance sobre combates, fugas, batalhas, nos deixa o corpo realmente moido, as pernas cançadas... O 1º grau está assegurado. No caso do sensual, deverá elle — sem nenhuma mastur[bação] mais que mental — ter uma ejaculação q[uan]do um mo[men]to d'esses chegar no romance.

Depois procurará traduzir tudo isso para mental. A ejaculação, no caso do sensual (que escolho para exemplo, porque é o mais violento e frisante) deverá sêr sentida sem se ter dado. O cansaço será m[ui]to maior, mas o prazer é completamente mais intenso.

No 3º grau passa toda a sensação a ser mental. Augmenta o prazer e augmenta o cansaço, mas o corpo já nada sente, e em vez dos membros lassos, a intelligencia, a idea, e a emoção é que ficam bambas e frouxas... Chegado aqui é tempo de passar para o grau supremo do sonho.
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O 2º grau é o construir romances para si proprio. Só deve tentar-se isto q[ua]ndo perfeitamente mentalizado o sonho, como antes disse. Se não, o esforço inicial em crear os romances, perturbará a perfeita mentalização do gôso.

(Propõem-se difficuldades)

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3º grau
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Já educada a imaginação, basta querer, e ella se encarregará de construir os sonhos por si.

Já aqui o cansaço é quasi nullo, mesmo mental. Ha uma dissolução absoluta da personalidade. Somos mera cinza, dotada de alma, sem fórma — nem mesmo a da agua que é a da vasilha que a contém.

— Bem aprontada esta ☐, dramas podem apparecer em nós, verso a verso, desenrolando-se alheios e perfeitos. Talvez já não haja a força de os escrevermos — nem isso será preciso. Poderemos criar em 2ª mão — imaginar em nós um poeta a escrever, e elle escreverá de uma maneira, outro poeta acaso escreverá de outra... Eu, em virtude de ter apurado immenso esta faculdade, posso escrever de innumeras maneiras diversas, originaes todas.

O mais alto grau do sonho é q[uan]do criado um quadro com personagens, vivemos todas ellas ao mesmo tempo — somos todas essas almas conjunta — e interactivamente.

É incrivel o grau de despersonalização e de encinzamento do espirito a que isto leva, e é difficil confesso-o, fugir a um cansaço geral de todo o sêr ao fazel-o... Mas o triumpho é tal!

Este é o unico ascetismo possivel. Não ha n'elle fé, nem um Deus.

Deus sou eu.
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M[aneira] de B[em] Sonhar nos Metaphysicos.