Jacinto do Prado Coelho - edição anotada - Usa Jacinto do Prado Coelho(127)

Quantas vezes, presa da superficie


L. do D.

12-4-1930

Quantas vezes, presa da superficie e do bruxedo, me sinto homem. Então convivo com alegria e existo com clareza. Sobrenado. E é-me agradavel receber o ordenado e ir para casa. Sinto o tempo sem o ver, e agrada-me qualquer cousa organica. Se medito, não penso. Nesses dias gosto muito dos jardins.

Não sei que cousa estranha e pobre existe na substancia intima dos jardins citadinos que só a posso sentir bem quando me não sinto bem a mim. Um jardim é um resumo da civilização — uma modificação anonyma da Natureza. As plantas estão alli, mas ha ruas-ruas. Crescem arvores, mas ha bancos por baixo da sua sombra. No alinhamento virado para os quatro lados da cidade, alli só largo, os bancos são maiores e teem quasi sempre gente.

Não odeio a regularidade das flores em canteiros. Odeio, porém, o emprego publico das flores. Se os canteiros fossem em parques fechados, se as arvores crescessem sobre recantos feudaes, se os bancos não tivessem alguem, haveria com que consolar-me na contemplação inutil dos jardins. Assim, na cidade, regrados mas uteis, os jardins são para mim como gaiolas, em que as espontaneidades coloridas das arvores e das flores não teem senão espaço para o não ter, logar para d'elle não sahir, e a belleza propria sem a vida que pertence a ella.

Mas ha dias em que esta é a paisagem que me pertence, e em que entro como um figurante numa tragedia comica. Nesses dias estou errado, mas, pelo menos em certo modo, sou mais feliz. Se me distraio, julgo que tenho realmente casa, lar, a onde volte. Se me esqueço, sou normal, poupado para um fim, escovo um outro fato e leio um jornal todo.

Mas a illusão não dura muito, tanto porque não dura como porque a noite vem. E a côr das flores, a sombra das arvores, o alinhamento de ruas e canteiros, tudo se esbate e encolhe. Por cima do erro e de eu estar homem abre-se de repente, como se a luz do dia fosse um panno de theatro que se escondesse para mim, o grande scenario das estrellas. E então esqueço com os olhos a plateia amorpha e aguardo os primeiros actores com um sobresalto de creança no circo.

Estou liberto e perdido.

Sinto. Esfrio febre. Sou eu.