Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 133D-38-38a)

A phrase do dia


Contava as mortes que
tivera na familia — não ouvi
bem quaes eram — sussurrava
as maguas que ellas lhe
haviam causado, e, de
repente, sem aviso ao
universo, sem que poder (?)
reparasse reparar no que dizia
ou reparassemos nós os
que o escutavamos, re-
mata, a erguer a chave-
na do café já
sem fumo:


"Assim é a vida, mas eu
não concordo." Foi esta
a phrase e eu só queria,
ao relembral-a, a gloria
de a poder ter eu inventado.
Os blasfemadores todos fi-
caram pobres por essa
phrase ter sido dita.
Ella é a expressão classica
e pura limpa hieratica d'aquella de
que elles são os romanticos
e os contorcionistas.


      A Phrase do Dia
─────────────────────────

"Assim é a vida,
mas eu não
concordo."
────────────────

Acordei com uma violencia
enorme, e registei a lapis subito, logo,
a phrase dita, para
que não me esquecesse
pela sua mesma simplici-
dade. "Assim é a vida,
mas eu não concordo" —
É a lucta interior dum
homem da rua nas
suas relações com a Natureza.
A sua expressão exacta, mera phrase casual e
alheia de um homem que não sei quem é, nem sabe de
si nem mais que eu sei d'elle.

Toda a arte, toda a religião, tudo quanto nos
intriga do existir, do           e de nós mesmo vive.


Ha momentos de
genio, momentos desincarnados
e vivos,
momentos que
são gente superior, e
apparecem de repente
á janella de certos
seres, ao acaso, porque
é a janella mais proxima.
Tal homem do povo, um
carroceiro ás redeas, um leiteiro
á conversa com a creada
gorda, um moço de
fretes incrustrado por
fóra de um candeeiro —
teem d'estas phrases... Só
agora me lembro que ouvi
outra, ha tempos, de uma
mulher que não vi, mas cuja voz relembro;
fallava com a voz de outra mulher a um
portal da casa por onde passei:
— Ora elle morreu
lá d'isso. Elle
morreu mas foi
de ter que
morrer!