Leitura Crítica 2 - Usa (BPARPD, ACR-CORR-4480-1-2r)

[Carta a Armando Côrtes-Rodrigues, 19 de Novembro de 1914]


                Lisboa, 19 de Novembro de 1914.

Meu querido Amigo:

Creio que ha duas malas que lhe não escrevo. Não
lhe escrevo ha uma, com certeza. Desculpe-me.
Eu já não sou eu. Sou um fragmento de mim conservado
n'um museu abandonado. Agora que a minha fa-
milia que aqui estava foi para a Suissa, desabou sobre
mim toda a casta de desastres que podem acontecer.
Porisso estou n'uma abulia absoluta, ou quasi absoluta,
de modo que fazer qualquér cousa me custa como se
fôsse levantar um grande peso ou lêr um volume do
Theophilo.

Você tambem não me tem escripto. Pelo menos,
desde a carta que v. me escreveu da cama, não
recebi mais nenhuma. Por misericordia, escreva-
me; não se esqueça de me escrever. Estou no
meio d'uma desolação infinita.

Tenho feito versos, isso tenho; eu, na minha
propria pessoa, mas esqueci-me hoje de os trazer
para o escriptorio, de onde lhe estou escrevendo. Oxa-
lá para a mala seguinte eu não me esqueça, e
lhe possa mandar, como queria, uma copia d'elles
todos. Tinha tambem para lhe mandar, por
ter relação com aquelle estudo a meu respeito para
o qual v. me pediu elementos, a genealogia do


meu terceiro avô, que, porisso por isso, vem a ser a minha.
Esta tenho na algibeira, mas custa-me muito, no
meu actual estado de não-ser copial-a, mesmo á
machina, porque é muito extensa. Outra vez
e por esta outra razão eu lhe peço desculpa.

A nossa idéa da Anthologia está de pé,
mas, é claro, só pode ser posta em practica depois
de terminar a guerra, visto que é um acto es-
thetico de caracter europeu, não é verdade?
Quando será isso?

O meu estado de espirito obriga-me agora
a trabalhar bastante, sem querer, no Livro
do Desassocego. Mas tudo fragmentos, fragmentos,
fragmentos.

Para acabar a minha desolação material
e exterior, imagine você que a unica cousa com
que eu n'este momento podia (parecia-me que podia)
contar — as cinco libras da traducção dos proverbios
(parece-me que v. viu-me aqui a trabalhar n'isso) —
faltou-me. Os homens só me mandam aquillo quando
publicarem o livro, depois da guerra! Uma catas-
trophe, meu caro.

Olhe lá, a este proposito e se o pedido o in-
commodar tenha-o como não feito, v. podia empres-
tar-me vinte mil reis? Eu não sei quando lh'os pode-
rei devolver, e de mais a mais, já lhe devo aquelles cinco
que v. uma vez me emprestou na Avenida. Mas se lhe


peço isto, meu caro, é que estou absolutamente
á bout de ressources. Literalmente naufragando,
meu caro Amigo. E nem familia aqui, nem
ninguem conhecido, salvo o Sá-Carneiro, que
tambem está atrapalhado e que, em todo o caso,
só com uma quantia muito pequena me poderia
escorar. Veja se v. me pode fazer este favôr — o
que v. puder em todo o caso.

Não móro já na Rua Pascoal de Mello, é
claro. Melhor modo de me escrever agora:
            Fernando Pessoa
          Na casa Lavado, Pinto e C.ª
              Campo das Cebolas, 43, LISBOA.

É o escriptorio onde pseudo-trabalho, e é o logar mais
seguro para onde me escrever. Para maior lucidez, por-
que a minha lettra está muito nervosa, junto um
papel com o endereço exacto, á machina.

Desculpe-me a monotonia e o desconchavo
d'esta carta, que v. comprehenderá bem. E não
julgue que cousas, como o "olhe lá" de alguns para-
graphos atraz, indicam alegria. Meu caro Amigo,
isso de alegria está na Ilha Longinqua, aquella que
v. sabe e eu sei e nenhum de nós sabe.

Dê meus cumprimentos a seu Pae.
        Um grande abraço do seu
            muito amigo
              Fernando Pessoa