Ler o Escrever - Usa LdoD-Arquivo(25)

Tenho mais pena dos que sonham o provavel


L. do D.

Tenho mais pena dos que sonham o provavel, o legi-
timo e o proximo, do que dos que devaneiam sobre o longinquo
e o estranho. Os que sonham grandemente, ou são doidos e
acreditam no que sonham e são felizes, ou são devaneadores
simples, para quem o devaneio é uma musica da alma, que os
embala sem lhes dizer nada. Mas o que sonha o possivel tem
a possibilidade real da verdadeira desillusão. Não me pode
pesar muito o ter deixado de não ter conseguido ser imperador romano, mas po-
de doer-me o nunca ter sequer fallado á
costureira que, cerca das nove horas, volta sempre a esquina
da direita. O sonho que nos promette o impossivel já nisso
nos priva d'elle, mas o sonho que nos promette o possivel
intromette-se com a propria vida e delega nella a sua solu-
ção. Um vive exclusivo e independente; o outro submisso das
contingencias do que acontece.

Porisso amo as paysagens impossiveis e as grandes
areas desertas dos plainos onde nunca estarei. As epocas
historicas passadas são de pura maravilha, pois desde logo
não posso suppor que se realizarão commigo. Durmo quando
sonho o que não ha; vou dispertar quando sonho o que pode ha-
ver.

Desbruço-me, de uma das janellas de sacada do es-
criptorio abandonado ao meio-dia, sobre a rua onde a minha
distracção sente movimentos de gente nos olhos, e os não
vê, da distancia da meditação. Durmo sobre os cotovellos
onde o corrimão me doe, e sei de nada como um grande promet-
timento. Os pormenores da rua parada onde muitos andam des-
tacam-se-me com um afastamento mental: os caixotes apinhados
na carroça, os saccos á porta do armazem do outro,
e, na montra mais afastada da mercearia da esquina, o vislum-
bre das garrafas d'aquelle vinho do Porto que sonho que nin-
guem pode comprar. Isola-se-me o espirito de metade da ma-
teria. Investigo com a imaginação. A gente que passa na rua
é sempre a mesma que passou ha pouco, é sempre o aspecto
fluctuante de alguem, nodoas de movimento, vozes de incer-
teza, coisas que passam e não chegam a acontecer.

A notação com a consciencia dos sentidos, antes
que com os mesmos sentidos... A possibilidade de outras coi-
sas... E, de repente, soa, de traz de mim no escriptorio, a
vinda metaphysicamente abrupta do moço. Sinto que o poderia
matar por me interromper o que eu não estava pensando. Olho-
o, voltando-me, com um silencio cheio de odio, escuto anti-
cipadamente, numa tensão de homicidio latente, a voz que el-
le vae usar para me dizer qualquer coisa. Elle sorri do fun-
do da casa e dá-me as boas tardes em voz alta. Odeio-o como
ao universo. Tenho os olhos pesados de suppor.