Text Mining - Usa Jacinto do Prado Coelho(38)

Depois que os ultimos calores do estio


L. do D.

29-1-1932

Depois que os ultimos calores do estio deixavam de ser duros no sol baço, começava o outomno antes que viesse, numa leve tristeza, prolixamente indefinida, que parecia uma vontade de não sorrir do céu. Era um azul umas vezes mais claro, outras mais verde, da propria ausencia de substancia da côr alta; era uma especie de esquecimento nas nuvens, purpuras differentes e esbatidas; era, não já um torpor, mas um tedio, em toda a solidão quieta por onde o que fora nuvens atravessam.

A entrada do verdadeiro outomno era depois annunciada por um frio dentro do não-frio do ar, por um esbater-se das côres que ainda se não haviam esbatido, por qualquer coisa de penumbra e de afastamento no que havia sido o tom das paisagens e o aspecto disperso das coisas. Nada ia ainda morrer, mas tudo, como que num sorriso que ainda faltava, se virava em saudade para a vida.

Vinha, por fim, o outomno certo: o ar tornava-se frio de vento; soavam folhas num tom secco, ainda que não fossem folhas seccas; toda a terra tomava a côr e a fórma impalpavel de um paul incerto. Descoloria-se o que fora sorriso ultimo, num cansaço de palpebras, numa indifferença de gestos. E assim tudo quanto sente, ou suppomos que sente, apertava, intima, ao peito a sua propria despedida. Um som de redemoinho num atrio fluctuava atravez da nossa consciencia de outra coisa qualquer. Aprazia convalescer para sentir verdadeiramente a vida.

Mas as primeiras chuvas do inverno, vindas ainda no outomno já duro, lavavam estas meias tintas como sem respeito. Ventos altos, chiando em coisas paradas, barulhando coisas presas, /arrastrando/ coisas moveis, erguiam, entre os brados irregulares da chuva, palavras ausentes de protesto anonymo, sons tristes e quasi raivosos de desespero sem alma.

E por fim o outomno cessava, a frio e cinzento. Era um outomno de inverno o que vinha agora, um pó tornado lama de tudo, mas, ao mesmo tempo, qualquer coisa do que o frio do inverno traz de bom — verão duro findo, primavera por chegar, outomno definindo-se em inverno enfim. E no ar alto, por onde os tons baços já não lembravam nem calor nem tristeza, tudo era propicio e à meditação indefinida.

Assim era tudo para mim antes que o pensasse. Hoje, se o escrevo, é porque o lembro. O outomno que tenho é o que perdi.