Desassossego - Usa (A Revista, n.º 2)

Amo, pelas tardes demoradas de verão


                            TRECHO

            DO “LIVRO DO DESASOCEGO”, COMPOSTO POR
            BERNARDO SOARES, AJUDANTE DE GUARDA-LI
                  VROS NA CIDADE DE LISBOA
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Amo, pelas tardes demoradas de verão, o socego da cidade
baixa, e sobretudo aquelle socego que o contraste accen-
tua na parte que o dia mergulha em mais bulicio. A
Rua do Arsenal, a Rua da Alfandega, o prolongamento
das ruas tristes que se alastram para leste desde que a
da Alfandega cessa, toda a linha dos caes quedos — tudo
isso me conforta de tristeza, se me insiro, por essas tardes, na soli-
dão do seu conjuncto. Vivo uma era anterior áquela em que vivo;
goso de sentir me coevo de Cesario Verde, e tenho em mim, não
outros versos como os d'elle, mas a substancia egual à dos versos que
fôram d'elle. Por alli arrasto, até haver noite, uma sensação de vida
parecida com a d'essas ruas. De dia ellas são cheias de um bulicio
que não quere dizer nada; de noite são cheias de uma falta de buli-
cio que não quere dizer nada. Eu de dia sou nullo, e de noite sou
eu. Não ha differença entre mim e as ruas para o lado da Alfandega,
salvo elas serem ruas e eu ser alma, o que pode ser que nada valha
ante o que é a essencia das cousas. Ha um destino egual, porque é
abstracto, para os homens e para as cousas — uma designação egual-
mente indifferente na algebra do mysterio.

Mas ha mais alguma cousa... Nessas horas lentas e vazias, so-
be-me da alma á mente uma tristeza de todo o ser, a amargura de
tudo ser ao mesmo tempo uma sensação minha e uma cousa externa,
que não está em meu poder alterar. Ah, quantas vezes os meus pro-
prios sonhos se me erguem em cousas, não para me substituirem a
realidade, mas para se me confessarem seus pares em eu os não
querer, em me surgirem de fóra, como o electrico que dá a volta
na curva extrema da rua, ou a voz do apregoador nocturno, de não
sei que cousa, que se destaca, toada arabe, como um repuxo subito,
da monotonia do entardecer!
                                                FERNANDO PESSOA