Jacinto do Prado Coelho - edição anotada - Usa Jacinto do Prado Coelho(187)

Floresce alto na solidão nocturna


L. do D.

8-9-1933

Floresce alto na solidão nocturna um candieiro incognito por traz de uma janella. Tudo mais na cidade que vejo está escuro, salvo onde reflexos frouxos da luz das ruas sobem vagamente e fazem aqui e alli pairar um luar inverso, muito pallido. Na negrura da noite a propria casaria destaca pouco, entre si, as suas diversas cores, ou tons de cores: só differenças vagas, dir-se-hia abstractas, irregularisam o conjuncto atropellado.

Um fio invisivel me liga ao dono anonymo do candieiro. Não é a commum circumstancia de estarmos ambos accordados: não ha nisso uma reciprocidade possivel, pois, estando eu à janella no escuro, ele nunca poderia ver-me. É outra cousa, minha só, que se prende um pouco com a sensação de isolamento, que participa da noite e do silencio, que escolhe aquelle candieiro para ponto de appoio porque é o unico ponto de appoio que ha. Parece que é por elle estar acceso que a noite é tam escura. Parece que é por eu estar disperto, sonhando na treva, que elle está allumiando.

Tudo que existe existe talvez porque outra coisa existe. Nada é, tudo coexiste: talvez assim seja certo. Sinto que eu não existiria, nesta hora — que não existiria, ao menos, do modo em que estou existindo, com esta consciencia presente de mim, que por ser consciencia e presente é neste momento inteiramente eu — se aquelle candieiro não estivesse acceso além, algures, pharol não indicando nada num falso privilegio de altura. Sinto isto porque não sinto nada. Penso isto porque isto é nada. Nada, nada, parte da noite e do silencio e do que com elles eu sou de nullo, de negativo, de intervallar, espaço entre mim e mim, coisa esquecimento de qualquer deus...