Edição Teresa Sobral Cunha - Usa Teresa Sobral Cunha(606)

Tenho sido sempre um sonhador irónico


16-10-1931 Tenho sido sempre um sonhador irónico, infiel às promessas interiores. Gozei sempre, como outro e estrangeiro, as derrotas dos meus devaneios, assistente casual ao que pensei ser. Nunca dei crença àquilo em que acreditei. Enchi as mãos de areia, chamei-a ouro, e abri as mãos dela toda, escorrente. A frase era a única verdade. Com a frase dita estava tudo feito; o mais era a areia que já era.

Se não fosse o sonhar sempre, o viver num perpétuo alheamento, poderia, de bom grado, chamar-me um realista, isto é, um indivíduo para quem o mundo exterior é /uma nação/ independente. Mas prefiro não me dar nome, ser o que sou com uma curta obscuridade e ter comigo a malícia de me não saber prever.

Tenho uma espécie de dever de sonhar sempre, pois, não sendo mais, nem querendo ser mais, que um espectador de mim mesmo, tenho que ter o melhor espectáculo que posso. Assim me construo a ouro e sedas, em salas supostas, palco falso, cenário antigo, sonho criado entre jogos de luzes brandas e músicas invisíveis.

Guardo, íntima, como a memória de um beijo grato, a lembrança de infância de um teatro em que o cenário, azulado e lunar, figurava o terraço de um palácio impossível. Havia, pintado também, um parque vasto em roda, e gastei a alma em viver como real aquilo tudo. A música, que soava branda nessa ocasião mental da minha experiência da vida, trazia para real de febre esse cenário dado.

O cenário era definitivamente azulado e lunar. No palco não me lembro quem aparecia, mas a peça que ponho na paisagem lembrada sai-me hoje dos versos de Verlaine e de Pessanha; não era a que deslembro, passada no palco vivo aquém daquela realidade de azul música. Era minha e fluida, mascarada imensa e lunar, interlúdio a prata e azul findo.

Depois veio a vida. Nessa noite levaram-me a cear ao Leão. Tenho ainda a memória dos bifes no paladar da saudade — bifes, sei porque suponho, como hoje ninguém faz ou eu não como. E tudo se me mistura — infância vivida à distância, comida saborosa de noite, cenário lunar, Verlaine futuro e eu presente — numa diagonal confusa, num espaço falso entre o que fui e o que sou.