Amor - Usa Jerónimo Pizarro(229)

Ha um cansaço da intelligencia


23/3/1930.
L. do D.

Ha um cansaço da intelligencia abstracta, e é o mais horroroso dos cansaços. Não pesa como o cansaço do corpo, nem inquieta como o cansaço do conhecimento e da emoção. É um peso da consciencia do mundo, um não poder respirar com sentirmo-nos.

Então, como se o vento nellas désse, e fossem nuvens, todas as idéas em que temos sentido a vida, todas as amplidões de designios em que temos fundado a sperança na continuação d'ella, se rasgam, se abrem, se afastam tornadas cinzas de nevoeiros, farrapos do que não foi nem poderia ser. E por traz da derrota surge pura a solidão negra e implacavel do céu deserto e estrellado.

O mysterio da vida doe-nos e apavora-nos de muitos modos. Umas vezes vem sobre nós como um phantasma sem fórma, e a alma treme com o peor dos medos — o da incarnação disforme do não-ser. Outras vezes está atraz de nós, visivel só quando nos não voltamos para ver, e é a verdade toda no seu horror profundissimo de que a não conheceremos nunca.

Mas este horror que hoje me annula é mais espaçadamente nocturno. É uma vontade de não querer ter pensamento, um desejo de nunca ter sido nada, um desespero consciente de todas as cellulas do corpo e da alma. É o sentimento subito de se estar enclausurado numa cella infinita. Para onde pensar em fugir, se só a cella é o Tudo?

E então vem-me o desejo transbordante, absurdo, de uma especie de satanismo que precedeu Satan, de que um dia — um dia sem tempo nem substancia — se encontre uma fuga para fóra de Deus e o mais profundo de nós deixe, não sei como, de fazer parte do ser e do não-ser.