Ler o Escrever - Usa LdoD-Arquivo(147)

Ha um cansaço da intelligencia abstracta


                                                23/3/1930.

L. do D.

Ha um cansaço da intelligencia abstracta, e é o mais horroroso
dos cansaços. Não pesa como o cansaço do corpo, nem
inquieta como o cansaço do conhecimento e da emoção. É um
peso da consciencia do mundo, um não poder
respirar com a alma sentirmo-nos.

Então, como se o vento nellas désse, e fossem
nuvens, todas as idéas em que temos sentido a
vida, todas as ambições e amplidões de designios em que temos
fundado a sperança na continuação d'ella,
se rasgam, se abrem, se afastam tornadas cinzas
de nevoeiros, farrapos do que não foi nem poderia
ser. E por traz da derrota surge pura a solidão
negra e implacavel do céu deserto e estrellado.

O mysterio da vida doe-nos e apavora-nos de
muitos modos. Umas vezes vem sobre nós como
um phantasma sem fórma, e a alma treme com
o peor dos mêdos — o da incarnação disforme
do não-ser. Outras vezes está atraz de nós, visi-
vel só quando nos não voltamos para ver, e é
a verdade toda no seu horror profun-
dissimo de a desconhecermos de que a não conheceremos nunca.

Mas este horror que hoje me annula, é
menos nobre e mais roedor mais espaçadamente nocturno. É uma vontade
de não querer ter pensamento, um desejo de
nunca ter sido nada, um desespero consciente
de todas as cellulas do corpo e da alma. É
o sentimento subito de se estar enclausurado
numa cella infinita. Para onde pensar
em fugir, se a cella é tudo o Tudo?

E então vem-me o desejo transbordante,
absurdo, de uma especie de satanismo que
precedeu Satan, de que um dia — um dia
sem tempo nem substancia — se encontre uma fuga para

fóra de Deus e o mais profundo de nós deixe, não sei como, de
fazer parte do ser ou e do não-ser.