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Hoje, em um dos devaneios sem proposito | Pedi tam pouco á vida


                    DO ‟LIVRO DO DESASOCEGO”

            COMPOSTO POR BERNARDO SOARES, AJUDANTE
            DE GUARDALIVROS NA CIDADE DE LISBOA

Hoje, em um dos devaneios sem proposito nem digni-
dade que constituem grande parte da substancia espiritual
da minha vida, imaginei-me liberto para sempre da Rua
dos Douradores, do patrão Vasques, do guarda-livros Mo-
reira, dos empregados todos, do moço, do garoto e do gato.
Senti em sonho a minha libertação, como se mares do Sul
me houvessem offerecido ilhas maravilhosas por descobrir.
Seria então o repouso, a arte conseguida, o cumprimento
intellectual do meu ser.

Mas de repente, e no proprio imaginar, que fazia num
café no feriado modesto do meio do dia, uma impressão de
desagrado me assaltou o sonho: senti que teria pena. Sim,
digo-o como se o dissesse circumstanciadamente: teria pe-
na. O patrão Vasques, o guarda-livros Moreira, o caixa
Borges, os bons rapazes todos, o garoto alegre que leva
as cartas ao correio, o moço de todos os fretes, o gato
meigo — tudo isso se tornou parte da minha vida; não po-
deria deixar tudo isso sem chorar, sem comprehender que,
por mau que me parecesse, era parte de mim que ficava com
elles todos, que o separar-me d'elles era uma metade e
similhança da morte.

Aliás, se amanhã me apartasse de elles todos, e des-
pisse este trajo da Rua dos Douradores, a que outra coisa
me chegaria — porque a outra me haveria de chegar?, de
que outro trajo me vestiria — porque de outro me haveria
de vestir?

Todos temos o patrão Vasques, para uns visivel, para
outros invisivel. Para mim chama-se realmente Vasques, e
é um homem sadio, agradavel, de vez em quando brusco mas
sem lado de dentro, interesseiro mas no fundo justo, com
uma justiça que falta a muitos grandes genios e a muitas
maravilhas humanas da civilização, direita e esquerda. Pa-
ra outros será a vaidade, a ansia de maior riqueza, a
gloria, a immortalidade... Prefiro o Vasques homem meu pa-
trão, que é mais tratavel, nas horas difficeis, que todos
os patrões abstractos do mundo.

Considerando que eu ganhava pouco, disse-me o outro
dia um amigo, socio de uma firma que é prospera por nego-
cios com todo o Estado: "você é explorado, Borges". Recor-
dou-me isso de que o sou; mas como na vida temos todos
que ser explorados, pergunto se valerá menos a pena ser
explorado pelo Vasques das fazendas do que pela vaidade,
pela glória, pelo despeito, pela inveja ou pelo impossivel.


Ha os que Deus mesmo explora, e são prophetas e santos
na vacuidade do mundo.

E recolho-me, como ao lar que os outros teem, á casa
alheia, escriptorio amplo, da Rua dos Douradores. Achego-
me á minha secretaria como a um baluarte contra a vida.
Tenho ternura, ternura até ás lagrimas, pelos meus livros
de outros em que escripturo, pelo tinteiro velho de que
me sirvo, pelas costas dobradas do Sergio, que faz guias
de remessa um pouco para além de mim. Tenho amor a isto,
talvez porque não tenha mais nada que amar — ou talvez,
tambem, porque nada valha o amor de uma alma, e, se temos
por sentimento que o dar, tanto vale dal-o ao pequeno as-
pecto do meu tinteiro como á grande indifferença das es-
trellas.

                                  FERNANDO PESSOA