Ler o Escrever - Usa LdoD-Arquivo(188)

Nunca durmo: vivo e sonho


L. do D.

Nunca durmo: vivo e sonho, ou, antes, sonho em
vida e a dormir, que tambem é vida. Não ha interrupção em
minha consciencia: sinto o que me cerca se não durmo ain-
da, ou se não durmo bem; entro logo a sonhar
desde que deveras durmo. Assim o que sou é um per-
petuo desenrolamento de imagens, connexas ou desconnexas,
fingindo sempre de exteriores, umas postas entre os homens
e a luz se estou disperto, outras postas entre os fantas-
mas e a sem-luz a que se vê, se estou dormindo. Verdadei-
ramente, não sei como distinguir uma coisa da outra, nem
ouso affirmar se não durmo quando estou disperto, se não estou
a dispertar quando durmo.

A vida é um novello que alguem emmaranhou. Ha
um sentido nella, se estiver desenrolada e posta ao com-
prido, ou enrolada bem. Mas, tal como está, é um proble-
ma sem novello proprio, um embrulhar-se sem onde.

Sinto isto, que depois escreverei, poisque vou
já sonhando as phrases a dizer, quando, atravez da noite
de meio-dormir, sinto, junto com as paisagens de sonhos
vagos, o ruido da chuva lá fora, a tornar-m'os mais va-
gos ainda. São adivinhas do vacuo, tremulas de abysmo,
e atravez d'ellas se escoa, inutil, a plangencia externa
da chuva constante, minucia abundante da paisagem do ou-
vido. Esperança? Nada. Do céu invisivel desce em som a
magua agua que vento alça. Continúo dormindo.

Era, sem duvida, nas alamedas do parque que
se passou a tragedia de que resultou a vida. Eram dois
e bellos e desejavam ser outra coisa; o amor tardava-
lhes no tedio do futuro, e a saudade do que haveria de
ser vinha já sendo filha o luar do amor que não tinham tido.
Assim, ao luar dos bosques proximos, pois atravez d'el-
les se coava a lua, passeavam, mãos dadas, sem desejos
nem esperanças, atravez do deserto proprio das aleas
abandonadas. Eram creanças inteiramente, poisque o não
eram em verdade. De alea em alea, silhuetas entre arvo-
re e arvore, percorriam em papel recortado aquelle sce-
nario de ninguem. E assim se sumiram para o lado dos
tanques, cada vez mais juntos e separados, e o ruido da
vaga chuva que cessa é o dos repuxos de para onde iam. Sou
o amor que elles tiveram e porisso os sei ouvir na noite
em que não durmo, e tambem sei viver infeliz.

                                                2/5/1932.