Semântica da Vida - Usa (BNP/E3, 4-1)

Tam dado como sou ao tedio


L. do D.

Tam dado como sou ao tedio, é curioso estranho que nunca, até
hoje, me lembrou de meditar em que consiste. Estou
hoje, deveras, nesse estado intermedio da alma em que nem
appetece a vida nem outra cousa. E emprego a subita lembran-
ça, de que nunca pensei em o que fôsse, em sonhar, ao longo
de pensamentos meio impressões, a analyse, sempre um pou-
co facticia, do que elle seja.

Não o sei, realmente, se o tedio é sòmente a correspon-
dencia disperta da somnolencia do vadio, se é coisa, na
verdade, mais nobre que esse
entorpecimento. Em mim o tedio é frequente, mas, que eu
saiba, porque reparasse, não obedece a regras de ap-
parecimento. Posso passar sem tedio um domingo inerte; pos-
so soffrel-o repentinamente, como uma nuvem externa, em
pleno trabalho attento. Não consigo relacional-o com um
estado da saúde ou da falta d'ella; não alcanço conhecel-o
como producto de causas que estejam na parte evi-
dente de mim.

Dizer que é uma angustia metaphysica disfarçada, que
é uma grande desillusão incognita, que é uma poesia surda
da alma aflorando aborrecida á janella que dá para a vida —
dizer isto, ou o que seja irmão d'isto, pode colorir o te-
dio, como uma creança ao desenho cujos contornos transborde
e apague, mas não me traz mais que um som de palavras a fa-
zer echo nas caves do pensamento.

O tedio... Pensar sem que se pense, com o cansaço de
pensar; sentir sem que se sinta, com a angustia de sentir;
não querer sem que se não queira, com a nausea de não que-
rer — tudo isto está no tedio sem ser o tedio, nem é d'elle
mais que uma paraphrase ou uma translação. É, na sensação
directa, como se de sobre o fosso do castello da alma se
erguesse a ponte levadiça, nem restasse, entre o castello
e as terras, mais que o poder olhal-as sem as poder percor-
rer. Ha um isolamento de nós em nós mesmos, mas um isola-
mento onde o que separa está estagnado como nós, agua suja
cercando o nosso desentendimento.

O tedio... Soffrer sem soffrimento, querer sem vonta-
de, pensar sem raciocinio... É como a possessão por um de-
monio negativo, um embruxamento por coisa nenhuma. Dizem
que os bruxos, ou os pequenos magos, conseguem, fazendo de
nós imagens, e a ellas infligindo maus tratos, que esses
maus tratos, por uma transferencia astral, se reflictam em
nós. O tedio surge-me, na sensação transposta d'esta ima-
gem, como o reflexo maligno de bruxedos de um


demonio das fadas, exercidas, não sobre uma imagem minha,
senão sobre a sua sombra. É na sombra intima de mim, no
exterior do interior da minha alma, que se collam papeis
ou se espetam alfinetes. Sou como o homem que vendeu a
sombra, ou, antes, como a sombra do homem que a vendeu.

O tedio... Trabalho bastante. Cumpro o que os mora-
listas da acção chamariam o meu dever social. Cumpro esse
dever, ou essa sorte, sem grande exforço nem notavel des-
intelligencia. Mas, umas vezes em pleno trabalho, outras
vezes, no pleno descanço que, segundo os mesmos moralis-
tas, mereço e me deve ser grato, transborda-se-me a alma
de um fel de inercia, e estou cansado, não da obra ou do repouso, mas
de mim.

De mim porquê, se não pensava em mim? De que outra
coisa, se não pensava nella? O mysterio do universo, que
baixa às minhas contas ou ao meu reclinio? A dor
universal de viver que se particulariza subitamente na
minha alma mediumnica? Para quê ennobrecer tanto quem não
se sabe quem é? É uma sensação de vacuo, uma fome sem
vontade de comer, tam nobre como estas sensações do sim-
ples cerebro, do simples estomago, vindas de fumar de
mais ou de não digerir bem.

O tedio... É talvez, no fundo, a insatisfacção da
alma intima por não lhe termos dado uma crença, a deso-
lação da creança triste que intimamente somos, por não
lhe termos comprado o brinquedo divino. É talvez a inse-
gurança de quem precisa mão que o guie, e não sente, no
caminho negro da sensação profunda, mais que a noite sem
ruido de não poder pensar, a estrada sem nada de não sa-
ber sentir...

O tedio... Quem tem Deuses nunca tem tedio. O tedio
é a falta de uma mythologia.

A quem não tem crenças, até a duvida é im-
possivel, até o scepticismo não tem força para desconfiar.
Sim, o tedio é isso: a perda, pela alma, da sua capacidade
de se illudir, a falta, no pensamento, da escada inexis-
tente por onde elle sobe solido à verdade.



                                            1/12/1931.