Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 4-24r-25r)

O mundo é de quem não sente


L. do D.

O mundo é de quem não sente. A condição essencial para
se ser um homem practico é a ausencia de sensibilidade. A
qualidade principal na practica da vida é aquella qualidade
que conduz à acção, isto é, a vontade. Ora ha duas coisas
que estorvam a acção — a sensibilidade e o pensamento analy-
tico, que não é, afinal, mais que o pensamento com sensibi-
lidade. Toda acção é, por sua natureza, a
projecção da personalidade sobre o mundo externo, e como o
mundo externo é em grande e principal parte composto por
entes humanos, segue que essa projecção da personalidade é
essencialmente o atravessarmo-nos no caminho alheio, o es-
torvar, ferir e esmagar os outros, conforme o nosso modo de
agir.

Para agir é, pois, preciso que nos não figuremos com
facilidade as personalidades alheias, as suas dores e ale-
grias. Quem sympathiza pára. O homem de acção considera o
mundo externo como composto exclusivamente de materia iner-
te — ou inerte em si mesma, como uma pedra sobre que passa
ou que afasta do caminho; ou inerte como um ente humano que,
porque não lhe pôde resistir, tanto faz que fôsse homem co-
mo pedra, pois, como à pedra, ou se afastou ou se passou
por cima.

O exemplo maximo do homem practico, porque reune a ex-
trema concentração da acção com a sua extrema importancia,
é o do estrategico. Toda a vida é guerra, e a batalha é,
pois, a syntese da vida. Ora o estrategico é um homem que
joga com vidas como o jogador de xadrez com peças do jogo.
Que seria do estrategico se pensasse que cada lance do seu
jogo põe noite em mil lares e magua em trez mil corações?
Que seria do mundo se fôssemos humanos?
Se o homem sentisse deveras, não haveria ci-
vilização. A arte serve de fuga para a sensibilidade que a
acção teve que esquecer. A arte é a Gata Borralheira, que
ficou em casa porque teve que ser.

Todo homem de acção é essencialmente animado e opti-
mista porque quem não sente é feliz. Conhece-se um homem
de acção por nunca estar mal mal disposto. Quem trabalha embo-
ra esteja mal disposto é um subsidiario da acção; póde ser
na vida, na grande generalidade da vida, um guarda-livros,
como eu sou na particularidade d'ella. O que não póde ser
é um regente de coisas ou de homens. À regencia pertence
a insensibilidade. Governa quem é alegre porque para ser
triste é preciso sentir.

O patrão Vasques fez hoje um negocio em que arruinou
um individuo doente e a familia. Emquanto fez o negocio
esqueceu por completo que esse individuo existia, excepto
como parte contraria commercial. Feito o negocio, veio-lhe



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a sensibilidade. Só depois, é claro, pois, se viesse antes,
o negocio nunca se faria. "Tenho pena do typo", disse-me elle.
"Vae ficar na miseria". Depois, accendendo o charuto, acres-
centou: "Em todo o caso, se elle precisar qualquer coisa de
mim " — entendendo-se, qualquer esmola — " eu não esqueço que
lhe devo um bom negocio e umas dezenas de contos."

O patrão Vasques não é um bandido: é um homem de acção.
O que perdeu o lance neste jogo póde, de facto, pois o pa-
trão Vasques é um homem generoso, contar com a esmola d'elle
no futuro.

Como o patrão Vasques são todos os homens de acção —
chefes industriaes e commerciaes, politicos, homens de guer-
ra, idealistas religiosos e sociaes, grandes poetas e gran-
des artistas, mulheres formosas, creanças que fazem o que
querem. Manda quem não sente. Vence quem pensa só o que pre-
cisa para vencer. O resto, que é a vaga humani-
dade geral, amorpha, sensivel, imaginativa e fragil, é não
mais que o panno de fundo contra o qual se destacam estas
figuras da scena até que a peça de fantoches acabe, o fundo -chato
de quadrados sobre o qual se erguem as peças de xadrez até
que as guarde o Grande Jogador que, illudindo a reportagem -se
com uma dupla personalidade, joga, entretendo-se, sempre
contra si mesmo.

                                          17/1/1932.