Jacinto do Prado Coelho - edição anotada - Usa Jacinto do Prado Coelho(487)

O mundo é de quem não sente


L. do D.

17-1-1932

O mundo é de quem não sente. A condição essencial para se ser um homem practico é a ausencia de sensibilidade. A qualidade principal na practica da vida é aquella qualidade que conduz á acção, isto é, a vontade. Ora ha duas coisas que estorvam a acção — a sensibilidade e o pensamento analytico, que não é, afinal, mais que o pensamento com sensibilidade. Toda a acção é, por sua natureza, a projecção da personalidade sobre o mundo externo, e como o mundo externo é em grande e principal parte composto por entes humanos, segue que essa projecção da personalidade é essencialmente o atravessarmo-nos no caminho alheio, o estorvar, ferir e esmagar os outros, conforme o nosso modo de agir.

Para agir é, pois, preciso que nos não figuremos com facilidade as personalidades alheias, as suas dores e alegrias. Quem sympathiza pára. O homem de acção considera o mundo externo como composto exclusivamente de materia inerte — ou inerte em si mesma, como uma pedra sobre que passa ou que afasta do caminho; ou inerte como um ente humano que, porque não lhe pôde resistir, tanto faz que fôsse homem como pedra, pois, como à pedra, ou se afastou ou se passou por cima.

O exemplo maximo do homem practico, porque reune a extrema concentração da acção com a sua extrema importancia, é a do estrategico. Toda a vida é guerra, e a batalha é, pois, a syntese da vida. Ora o estrategico é um homem que joga com vidas como o jogador de xadrêz com peças do jogo. Que seria do estrategico se pensasse que cada lance do seu jogo põe noite em mil lares e magua em trez mil corações? Que seria do mundo se fôssemos humanos? Se o homem sentisse deveras, não haveria civilização. A arte serve de fuga para a sensibilidade que a acção teve que esquecer. A arte é a Gata Borralheira, que ficou em casa porque teve que ser.

Todo o homem de acção é essencialmente animado e optimista porque quem não sente é feliz. Conhece-se um homem de acção por nunca estar mal mal disposto. Quem trabalha embora esteja mal disposto é um subsidiario da acção; póde ser na vida, na grande generalidade da vida, um guarda-livros, como eu sou na particularidade d'ella. O que não póde ser é um regente de coisas ou de homens. À regencia pertence a insensibilidade. Governa quem é alegre porque para ser triste é preciso sentir.

O patrão Vasques fez hoje um negocio em que arruinou um individuo doente e a familia. Enquanto fez o negocio esqueceu por completo que esse individuo existia, excepto como parte contraria commercial. Feito o negocio, veio-lhe a sensibilidade. Só depois, é claro, pois, se viesse antes, o negocio nunca se faria. "Tenho pena do typo" disse-me elle. "Vae ficar na miseria". Depois, accendendo o charuto, acrescentou: "Em todo o caso, se elle precisar qualquer coisa de mim " — entendendo-se qualquer esmola — " eu não esqueço que lhe devo um bom negocio e umas dezenas de contos."

O patrão Vasques não é um bandido: é um homem de acção. O que perdeu o lance neste jogo póde, de facto, pois o patrão Vasques é um homem generoso, contar com a esmola d'elle no futuro.

Como o patrão Vasques são todos os homens de acção — chefes industriaes e commerciaes, politicos, homens de guerra, idealistas religiosos e sociaes, grandes poetas e grandes artistas, mulheres formosas, creanças que fazem o que querem. Manda quem não sente. Vence quem pensa só o que precisa para vencer. O resto, que é a vaga humanidade geral, amorpha, sensivel, imaginativa e fragil, é não mais que o panno de fundo contra o qual se destacam estas figuras da scena até que a peça de fantoches acabe, o fundo-chato de quadrados sobre o qual se erguem as peças de xadrês até que as guarde o Grande Jogador que, illudindo a reportagem com uma dupla personnalidade, joga, entretendo-se sempre contra si mesmo.