Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 4-59-60-61-62-63 e 138A-56r)

Marcha funebre para o Rei Luiz Segundo da Baviera


Marcha funebre para o Rei Luiz Segundo da
              Baviera.
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Hoje, mais demorada do que nunca, veio
a Morte vender ao meu limiar .
Deante de mim, mais demorada do que
nunca, desdobrou os tapetes, as sedas, e os
damascos, do seu esquecimento e da
sua consolação. Sorria d'elles por elogio,
e não se importando que eu a o visse
(que eu visse o seu sorriso). Mas quando
eu me tentava por comprar, fallou-me
que não os vendia. Não viera para que
eu quizesse o que me mostrava trazia; mas para
que, por o que mostrava trazia, a quizesse
a ella. E, dos seus tapetes, disse-me
que eram os que se gosavam pisavam no seu
palacio longinquo; das suas sedas, que
outras se não trajavam no seu
castello (dominio) na de sombra; dos seus
damascos, que melhores ainda eram
os que cobriam, toalhas, os retabulos
da sua estancia para além do
mundo.


2.

O apego natal (nativo) (antigo), que me
prendia ao meu limiar desvestido,
com gesto suave (o) desligou. “O teu lar”
disse, “não tem lume: para que
queres tu ter um lar?” “A tua casa” meza
disse “não tem pão: para com que te
serve sorri a tua meza?” “A tua vida”
disse “não tem quem a acompanhe:
para com que quem te seduz a tua vida?”

“Eu sou” disse ella, “o lume das
lareiras apagadas, o pão das mezas de-
sertas, a companheira companhia sollicita dos
solitarios e dos incomprehendidos despercebidos. A
gloria, que falta no mundo, é pompa
no meu negro grande dominio. No meu imperio
o amor não cansa, porque soffra
por ter; nem doe, porque canse de
nunca ter tido. A minha mão
pousa de leve nos cabellos dos que
pensam, e elles esquecem; contra o
meu seio se encostam os que em
vão esperaram, e elles enfim por fim
confiam.”


3.

“O amor, que me teem”, ella disse,
“não tem paixão, que consuma; ciume,
que desvaire; esquecimento, que
deslustre. Amar-me é como uma noite
de verão, quando os mendigos dormem
ao relento, e parecem pedras sombras á beira
dos caminhos. Dos meus labios mudos
não vem canto como o das sereias,
nem melodia como a das arvores e
das fontes; mas o meu silencio aco-
lhe como uma musica indecisa insensivel,
o meu socego affaga como
o torpor a consciencia de uma briza."

“Que tens tu”, ella disse, “que te ligue case
á vida? O amor não te busca, a gloria
não te procura, o poder não te en-
contra. A casa, que herdaste, a herdaste
em ruinas. As terras, que recebeste, ti-
nha a geada queimado as suas primicias,
e o sol ardido as suas promessas. Nunca
viste, senão secco, o poço da tua quinta.
Apodrecem, de antes de as veres, as folhas
nos teus tanques. As hervas ruins cobriram


4
as aleas e as alamedas, por onde os teus
pés nunca passaram.

“Mas no meu dominio, onde só a noite
reina, terás a consolação, porque
não terás a esperança; terás o es-
quecimento, porque não terás o desejo saudade;
terás o repouso, porque não terás a
vida.”

E mostrou-me como era steril a
sperança de melhores dias, quando se não
nascera com alma, com que os dias
bons melhores se obtivessem. Mostrou-me como
o sonho não consola, porque a vida doe
mais quando se accorda. Mostrou-me
como o somno não repousa, porque
o habitam phantasmas, sombras das
cousas, rastos dos gestos, embryões mortos
dos desejos, despojos do naufragio de viver.

E, assim dizendo, dobrara de vagar,
mais demorada do que nunca, os seus
tapetes, onde os meus olhos se tentavam,
as suas sedas, que a minha alma cobiçava,
os damascos dos seus retabulos, onde já (as) minhas
lagrimas cahiam.


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Porque has de tentar ser como os outros, se
estás condemnado a ti? Para que has de
rir, se, quando ris, a tua propria alegria sincera é falsa,
porque nasce de te esquecer de quem és?
Para que has de chorar, se sentes que
de nada te serve, e choras mais as
lagrimas não te conso-
larem, que porque as lagrimas te consolem?

Se és feliz quando ris, quando ris venci;
se então és feliz porque te não lembras de quem és, quão
mais feliz serás comigo, onde não mais te lembrarás
de nada? Se descansas perf[eitamente], se
accaso dormes sem sonhar, como não descan-
sarás no meu leito, onde o somno nunca
tem sonhos? Se um momento te elevas,
porque vês a Belleza, e te esqueces de ti e
da Vida, como não te elevarás no meu palacio,
cuja belleza nocturna não soffre discordancia, nem
edade, nem corrupção; nas minhas sallas onde
nenhum vento perturba os reposteiros, nenhum pó
cobre os espaldares, nenhuma luz desbota, pouco
a pouco, os velludos e os estofos, nenhum tempo amarellece
a brancura dos ornatos vazia dos muros. brancos?


                  6

Vem ao meu carinho, que não soffre mu-
dança; ao meu amor, que não tem cessação!
Bebe da minha taça, que não se exgotta, o nectar
supremo que não enjoa nem amarga, que não
desgosta nem inebria. Contempla, da janella
do meu castello, não o luar e o mar, que são
cousas bellas e porisso imperfeitas; mas a noite
vasta e materna, o splendor indiviso do abysmo
profundo!

Nos meus braços esquecerás o proprio caminho doloroso
que te trouxe a elles. Contra o meu seio não sen-
tirás mais o proprio amor que fez com que o
buscasses! Senta-te ao meu lado, no
meu throno, e és para sempre o imperador
indesthronavel do Mysterio e do Graal, co-
existes com os deuses e com os destinos,
em não seres nada, em não teres aquem e
alem, em não precisares nem do que te sobre,
nem do que te falte, nem sequer mesmo do que te baste.

Serei tua esposa materna, tua irmã gemea encontrada. E
casadas comigo todas as tuas angustias, regressado a mim tudo o que
em ti procuravas e não tinhas, tu-proprio te perderás em minha substancia
mystica, na minha existencia negada, no meu seio onde as cousas
se apagam, no meu seio onde as almas se abysmam, no meu seio onde
os deuses se desvanecem.


                  a

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Senhor Rei do Desapego e da Renuncia,
Imperador da Morte e do Naufragio, sonho
vivo errando, faustuoso, entre as ruinas
e as estradas exilios do mundo!

Senhor Rei da Desesperança entre pom-
pas, dono doloroso dos palacios que
o não satisfazem, mestre dos cortejos e
dos apparatos que não conseguem
apagar a vida!

Senhor Rei erguido dos tumulos, que
vieste na noite e ao luar, contar a
tua vida ás vidas, pagem do[s] lyrios
desfolhados, arauto imperial da
frieza dos marfins!

Senhor Rei Pastor das Vigilias,
cavalleiro andante das Angustias,
sem gloria e sem dama ao luar
das estradas, senhor nas florestas nas
escarpas, perfil mudo, de viseira cahida,
passando nos valles, incomprehendido pelas
aldeias, chasqueado pelas villas, desprezado
pelas cidades!


                  b


Senhor Rei que a Morte sagrou Seu,
pallido e absurdo, esquecido e desco-
nhecido, reinando entre pedras foscas
e velludos velhos, no meu throno ao
fim do Possivel, com a sua côrte
irreal cercando-o, sombras, e a sua
milicia phantastica, guardando-o,
mysteriosa e vazia.

─────

Trazei, pagens; trazei, virgens; trazei
servos e servas, as taças, as salvas
e as grinaldas para o festim a que a
Morte assiste convida! Trazei-as e vinde de
negro, com a cabeça coroada de myrtos.

Mandrágora seja o que tragaes nas
taças,           nas salvas, e as grinaldas
sejam de violetas          , das flores todas
que lembrem a tristeza.

Vae o Rei a jantar com a Morte,
no seu palacio antigo, á beira do lago,
entre as montanhas, longe da vida, alheio ao
mundo.


                  c


Sejam de instrumentos extranhos, cujo mero
som faça chorar, as orchestras que se prepa-
ram para a festa. Os servos vistam
librés sombrias, de cores desconhecidas, faustosos
e simples como os catafalcos dos heroes suicidas.


E, antes que o festim comece, passe
pelas alamedas dos grandes largos parques o
grande cortejo medieval de purpuras
mortas, o grande cerimonial silencioso
[em marcha], como a belleza num
pesadelo.

A Morte é o triumpho da Vida!

Pela morte vivemos, porque só somos hoje porque
morremos para hontem. Pela morte esperamos, porque
só podemos crer em amanhã pela confiança na
morte de hoje. Pela Morte vivemos quando sonhamos,
porque sonhar é negar a vida. Pela morte
morremos quando vivemos, porque viver é negar a
eternidade! A Morte nos guia, a morte
nos busca, a morte nos acompanha. Tudo
o que temos é Morte, tudo o que queremos é Morte,
é morte tudo o que desejamos querer.


Uma briza de attenção percorre as alas.

Eil-o que vae chegar, com a morte que ninguem vê
e a       que não chega nunca.

Arautos, tocae! Attendei!
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Teu amor pelas cousas sonhadas era o
teu desprezo pelas cousas vividas.


Rei-Virgem que desprezaste o amor,
Rei-Sombra que desdenhaste a luz,
Rei-Sonho que não quizeste a vida!

Entre o estrepito surdo de cymbalos
e atabales, a Sombra te acclama Imp-
erador! end e ao fundo a Morte como
todo o Ceu

Luz no occaso o teu advento, a estas
regiões onde a Morte rege reina.

Coroaram-te com flores mysteriosas,
de cores ignotas (ignoradas), grinalda
absurda que te cabe como a um deus deposto.

... teu purpureo culto do sonho,     fausto da
ante-câmara da Morte.

          hetairas impossiveis do abysmo


Tocae, arautos, do alto das ameias,
saudando esta grande a impossivel madrugada!

O Rei da Morte vae chegar ao regressa
seu dominio!

Flores de abysmo, rosas negras, cravos
de côr branca do luar, papoulas de um vermelho
que tem luz.




no meu seio onde as cousas
se abysmam, no meu seio onde as
almas se apagam, no meu seio onde
os deuses se desvanecem.


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