Edição Teresa Sobral Cunha - Usa Teresa Sobral Cunha(159)

MARCHA FÚNEBRE PARA O REI LUÍS SEGUNDO DA BAVIERA | Hoje, mais demorada do que nunca


Hoje, mais demorada do que nunca, veio a Morte vender ao meu limiar.

Diante de mim, mais demorada do que nunca, desdobrou os tapetes, as sedas, e os damascos, do seu esquecimento e da sua consolação. Sorria deles por elogio, e não se importando que eu que eu visse o seu sorriso. Mas quando eu me tentava por comprar, falou-me que não os vendia. Não viera para que eu quisesse o que trazia; mas para que, por o que trazia, a quisesse a ela. E, dos seus tapetes, disse-me que eram os que se pisavam no seu palácio longínquo; das suas sedas, que outras se não trajavam no seu domínio na sombra; dos seus damascos, que melhores ainda eram os que cobriam, toalhas, os retábulos da sua estância para além do mundo.

O apego antigo, que me prendia ao meu limiar desvestido, com gesto suave o desligou. “O teu lar”, disse, “não tem lume: para que queres tu ter um lar?” “A tua mesa”, disse, “não tem pão: com que te sorri a tua mesa?” “A tua vida”, disse, “não tem quem a acompanhe: com que te seduz a tua vida?”

“Eu sou”, disse ela, “o lume das lareiras apagadas, o pão das mesas desertas, a companhia solícita dos solitários e dos despercebidos. A glória, que falta no mundo, é pompa no meu grande domínio. No meu império o amor não cansa, porque sofra por ter; nem doí, porque canse de nunca ter tido. A minha mão pousa de leve nos cabelos dos que pensam, e eles esquecem; contra o meu seio se encostam os que em vão esperaram, e eles por fim confiam.”

“O amor, que me têm”, ela disse, “não tem paixão que consuma; ciúme que desvaire; esquecimento que /deslustre/. Amar-me é como uma noite de verão, quando os mendigos dormem ao relento, e parecem sombras à beira dos caminhos. Dos meus lábios mudos não vem canto como o das sereias, nem melodia como a das árvores e das fontes; mas o meu silêncio acolhe como uma música insensível, o meu sossego afaga como a consciência de uma brisa."

“Que tens tu”, ela disse, “que te case à vida? O amor não te busca, a glória não te procura, o poder não te encontra. A casa, que herdaste, a herdaste em ruínas. As terras, que recebeste, tinha a geada queimado as suas /primícias/, e o sol ardido as suas promessas. Nunca viste, senão seco, o poço da tua quinta. Apodreceram, de antes de as veres, as folhas nos teus tanques. As ervas ruins cobriram as áleas e as alamedas, por onde os teus pés nunca passaram. ”

“Mas no meu domínio, onde só a noite reina, terás a consolação, porque não terás a esperança; terás o esquecimento, porque não terás a saudade; terás o repouso, porque não terás a vida.”

E mostrou-me como era estéril a esperança de melhores dias, quando se não nascera com alma, com que os dias melhores se obtivessem. Mostrou-me como o sonho não consola, porque a vida dói mais quando se acorda. Mostrou-me como o sono não repousa, porque o habitam fantasmas, sombras das coisas, rastos dos gestos, embriões mortos dos desejos, despojos do naufrágio de viver.

E, assim dizendo, dobrara de vagar, mais demorada do que nunca, os seus tapetes, onde os meus olhos se tentavam, as suas sedas, que a minha alma cobiçava, os damascos dos seus retábulos, onde só minhas lágrimas caíam.

“ Porque hás-de tentar ser como os outros, se estás condenado a ti? Para que hás-de rir, se, quando ris, a tua própria alegria sincera é falsa, porque nasce de te esqueceres de quem és? Para que hás-de chorar, se sentes que de nada te serve, e choras mais as lágrimas não te consolarem, que porque as lágrimas te consolem?

Se és feliz quando ris, quando ris venci; se então és feliz porque te não lembras de quem és, quão mais feliz serás comigo, onde não mais te lembrarás de nada? Se descansas perfeitamente, se acaso dormes sem sonhar, como não descansarás no meu leito, onde o sono nunca tem sonhos? Se um momento te elevas, porque vês a Beleza, e te esqueces de ti e da Vida, como não te elevarás no meu palácio, cuja beleza nocturna não sofre discordância, nem idade, nem corrupção; nas minhas salas onde nenhum vento perturba os reposteiros, nenhum pó cobre os espaldares, nenhuma luz desbota, pouco a pouco, os veludos e os estofos, nenhum tempo amarelece a brancura vazia dos muros.

Vem ao meu carinho, que não sofre mudança; ao meu amor, que não tem cessação! Bebe da minha taça, que não se esgota, o néctar supremo que não enjoa nem amarga, que não desgosta nem inebria. Contempla, da janela do meu castelo, não o luar e o mar, que são coisas belas e por isso imperfeitas; mas a noite vasta e materna, o esplendor indiviso do abismo profundo!

Nos meus braços esquecerás o próprio caminho doloroso que te trouxe a eles. Contra o meu seio não sentirás mais o próprio amor que fez com que o buscasses! Senta-te ao meu lado, no meu trono, e és para sempre o imperador indestronável do Mistério e do Graal, coexistes com os deuses e com os destinos, em não seres nada, em não teres aquém e além, em não precisares nem do que te sobre, nem do que te falte, nem sequer mesmo do que te baste.

Serei tua esposa materna, tua irmã gémea encontrada. E casadas comigo todas as tuas angústias, reservado a mim tudo o que em ti procuravas e não tinhas, tu próprio te perderás em minha substância mística, na minha existência negada, no meu seio onde as coisas se abismam, no meu seio onde as almas se abismam, no meu seio onde os deuses se desvanecem.