Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 4-38r-39r)

Nasci em um tempo


                                        29/3/1930.


L. do D.
          (trecho inicial).

Nasci em um tempo em que a maioria dos jovens haviam
perdido a crença em Deus, pela mesma razão que os seus maio-
res a haviam tido — sem saber porquê. E então, porque o
espirito humano tende naturalmente para criticar porque
sente, e não porque pensa, a maioria d'esses jovens esco-
lheu a Humanidade para succedaneo de Deus.
Pertenço, porém, aquella especie de homens que estão sem-
pre na margem d'aquillo a que pertencem, nem veem só a
multidão de que são, senão tambem os grandes espa-
ços que ha ao lado. Porisso nem abandonei Deus tam ampla-
mente como elles, nem acceitei nunca a Humanidade. Consi-
derei que Deus, sendo improvavel, poderia ser; /podendo
pois dever
ser adora-
do; mas
que a
Humanidade, sendo uma mera idéa biologica, e não
significando mais que a especie animal
Humana, não era mais digna de adoração do que qualquer ou-
tra especie animal. Este culto da Huma-
nidade, com seus ritos de Liberdade e Egualdade, pareceu-
me sempre uma reviviscencia dos cultos antigos, em que
animaes eram como deuses, ou os deuses tinham cabeças de ani-
maes.

Assim, não sabendo crer em Deus, e não podendo crer
numa somma de animaes , fiquei, como
outros da orla das gentes, naquella distancia de tudo a
que commummente se chama a Decadencia. A Decadencia é a
perda total da inconsciencia; porque a inconsci-
encia é o fundamento da vida. O coração, se pudesse pen-
sar, pararia.

A quem, como eu, assim, vivendo não sabe ter vida,
que resta senão, como a meus poucos pares, a renun-
cia por modo e a contemplação por destino. (? ) Não sa-
bendo o que é a vida religiosa, nem podendo sabel-o, por-
que se não tem fé com a razão; não podendo ter fé na abstracção
do homem, nem sabendo mesmo que fazer d'ella peran-
te nós, ficava-nos, como motivo de ter alma, a contempla-
ção esthetica da vida. E, assim, alheios á solemnidade
de todos os mundos, indifferentes ao divino e desprezadores
do humano, entregamo-nos futilmente á sensação
sem proposito, cultivada num epicurismo subtilizado, co-
mo convém aos nossos nervos cerebraes.

Retendo, da sciencia, sómente aquelle seu preceito
central, de que tudo é sujeito a leis fataes, contra as
quaes se não reage independentemente, por que reagir é
ellas terem feito que reagissemos; e verificando como es-
se preceito se ajusta ao outro, mais antigo, da divina fatali-
dade das coisas, abdicamos do exforço como os debeis do
entretimento dos athletas, e curvamo-nos sobre o livro
das sensações com um grande escrupulo de erudição sentida.


                                        (2)


Não tomando nada a serio, nem considerando que nos
fôsse dada, por certa, outra realidade que não as nossas
sensações, nellas nos abrigamos, e a ellas exploramos
como a grandes paizes desconhecidos. E, se nos empregamos
assiduamente, não só na contemplação esthetica, mas tambem
na expressão dos seus modos e resultados, é que a prosa ou
o verso que escrevemos, destituidos de vontade de querer
convencer o alheio entendimento ou mover a alheia von-
tade, é apenas como o fallar alto de quem lê, feito para
dar plena objectividade ao prazer subjectivo da leitura.

Sabemos bem que toda a obra tem que ser imperfeita,
e que a menos segura das nossas contemplações estheti-
cas será a de aquillo que escrevemos. Mas imperfeito é
tudo, nem ha poente tam bello que o não pudesse ser mais,
ou brisa leve que nos dê somno que não pudesse
dar-nos um somno mais calmo ainda. E assim, contemplado-
res eguaes das montanhas e das estatuas, gosando os dias
como os livros, sonhando tudo, sobretudo, para o conver-
ter na nossa intima substancia, faremos tambem descrip-
ções e analyses, que, uma vez feitas, passarão a ser coi-
sas alheias, que podemos gosar como se viessem na tarde.

Não é este o conceito dos pessimistas, como aquelle de
Vigny, para quem a vida é uma cadeia, onde elle tecia palha
para se distrahir. Ser pessimista é tomar qualquer coisa
como tragico, e essa attitude é um exaggero e um incommo-
do. Não temos, é certo, um conceito de valia que applique-
mos á obra que produzimos. Produzimol-a, é certo, para
nos distrahir, porém não como o preso que tece a palha,
para se distrahir do Desti-
no, senão da menina que borda almofadas, para se distra-
hir, sem mais nada.

Considero a vida uma estalagem onde tenho que me
demorar até que chegue a diligencia do abysmo. Não sei onde
ella me levará, porque não sei nada. Poderia considerar
esta estalagem uma prisão, porque estou compellido a
aguardar nella; poderia consideral-a um logar de socia-
veis, porque aqui me encontro com outros. Não sou, porém,
nem impaciente nem commum. Deixo ao que são os que se
fecham no quarto, deitados molles na cama onde esperam sem somno;
deixo ao que fazem os que conversam nas salas, de onde
as musicas e as vozes chegam commodas até mim. Sento-me
á porta e embebo meus olhos e ouvidos nas cores e nos
sons da paisagem, e canto lento, para mim só, vagos can-
tos que componho emquanto espero.

Para todos nós descerá a noite e chegará a
diligencia. Goso a brisa que me dão e a alma que me de-
ram para gosal-a, e não interrogo mais nem procuro. Se
o que deixar escripto no livro dos viajantes puder, reli-
do um dia por outros, entretel-os tambem na passagem,
será bem. Se não o lerem, nem se entretiverem, será bem
tambem.


      A Estalagem da Razão

A meio caminho entre a fé e a critica está
a estalagem da razão. A razão é a fé no que se
pode comprehender sem fé; mas é uma fé ainda,
porque comprehender
involve presuppor que ha
qualquer cousa comprehensivel.