Ler o Escrever - Usa LdoD-Arquivo(246)

Paisagem de chuva


Paisagem de chuva

Toda a noite, e pelas horas fóra, o chiar da
chuva baixou. Toda a noite, comigo entredesperto,
a na monotonia fria liquida me insistiu, fria, nos vidros. Ora um
rasgo de vento, em ar mais alto, acoitava, e a agua
ondeava de som magua e passava mãos azas rapidas pela
vidraça; ora um som surdo só fazia somno no
exterior morto. A minha alma era a mesma de sempre,
entre lençóes como entre gente, dolorosamente
consciente do mundo. Tardava o dia como a
felicidade e áquella hora parecia que tambem indefinidamente.

Se o dia e a felicidade nunca viessem! Se esperar,
ao menos, pudesse nem sequér ter a desillusão de conseguir.


O som casual de um carro tardo tardio, aspero a saltar
nas pedras, crescia do fundo da rua, estralejou
por baixo da vidraça, apagava-se para o fundo na
rua calçada, para o fundo do vago somno que eu não conseguia
de todo. Batia, de quando em quando, uma porta
de escada. Ás vezes havia um chapinhar liquido de
passos, um roçar por si-mesmos de vestes molhadas. Uma
ou outra vez, quando os passos eram mais, soava alto
e atacava destacava. Depois o silencio volvia, com os passos
que se apagavam, e a chuva continuava, innumeravel-
mente.

Nas paredes escuramente visiveis do meu quarto, se eu
abria os olhos do somno falso, boiavam fragmentos de sonhos por
fazer, vagas luzes, riscos pretos, coisas de nada que trepavam e desciam.
Os moveis, maiores do que de dia, manchavam vagamente o absurdo
da treva. A porta era indicada por qualquer
cousa nem mais branca, nem mais
preta do que a noite, mas differente. Quanto á janella,
(eu só apenas) a ouvia.

Nova, fluida, incerta, a chuva soava. Os momentos tardavam ao som d'ella.
A solidão da minha alma alargava-se, alastrava, involvia o que eu sentia, o que eu queria,
o que eu ia a sonhar. Os objectos vagos, par-
ticipantes, na sombra, da minha insomnia, passavam
a ter logar e dôr na minha desolação.