Deus - Usa (BNP/E3, 5-51)

Se eu tivesse escripto o Rei Lear


L. do Des.

Se eu tivesse escripto o Rei Lear, levaria com remorsos toda a mi-
nha vida de depois. Porque essa obra é tão grande, que enormes avultam
os seus defeitos, os seus monstruosos defeitos, as cousas até minimas
que estão entre certas scenas e a perfeição possivel d'ellas. Não é o
sol com manchas; é uma estatua grega partida. Tudo quanto tem sido fei-
to está cheio de erros, de faltas de perspectiva, de ignorancias, de
traços de mau-gosto, de fraquezas e desattenções. Escrever uma obra de
arte com o preciso tamanho para ser grande, e a precisa perfeição para
ser sublime, ninguem tem o divino de o fazer, a sorte de o ter feito.
O que não pode ir de um jacto soffre do accidentado do n/ espirito.

Se penso n'isto entra com minha imaginação um desconsolo enorme,
uma dolorosa certeza de nunca poder fazer nada de bom e util para a Bel-
leza. Não ha methodo de obter a Perfeição excepto ser Deus. O nosso maior
esforço dura tempo; o tempo que dura atravessa diversos estados da nossa
alma, e cada estado de alma, como não é outro qualquér, perturba com a
sua personalidade a individualidade da obra. Só temos a certeza de es-
crever mal, quando escrevemos; a unica obra grande e perfeita é aquella
que nunca se sonhe realisar.

Escuta-me ainda, e compadece-te. Ouve tudo isto e diz-me depois se
o sonho não vale mais que a vida. O trabalho nunca dá resultado. O es-
forço nunca chega a parte nenhuma. Só a abstenção é nobre e alta, por-
que ella é a que reconhece que a realisação é sempre inferior, e que a
obra feita é sempre a sombra grotesca da obra sonhada.

Poder escrever, em palavras sobre papel, que se possam depois lêr
alto e ouvir, os dialogos das personagens dos meus dramas imaginados!
Esses dramas teem uma acção perfeita e sem quebra, dialogos sem falha,
mas nem a acção se esboça em mim em comprimento, para que eu a possa pro-
jectar em realisação; nem são propriamente palavras o que forma substan-
cia d'esses dialogos intimos, para que, ouvidas com attenção, eu as possa
traduzir para escriptas.


Amo alguns poetas lyricos porque não foram poetas epicos ou drama-
ticos, porque tiveram a justa intuição de nunca querer mais realisação
do que a de um momento de sentimento ou de sonho. O que se pode escrever
inconscientemente — tanto mede o possivel perfeito. Nenhum drama de Shakes-
peare satisfaz como uma lyrica de Heine. É perfeita a lyrica de Heine, e
todo o drama — de um Shakespeare ou de outro, é imperfeito sempre. Poder
construir, erguer um Todo, compor uma cousa que seja como um corpo humano,
com perfeita correspondencia nas suas partes, e com uma vida, uma vida de
unidade e congruencia, unificando a dispersão de feitios das duas partes!

Tu, que me ouves e mal me escutas, não sabes o que é esta tragedia!
Perder pae e mãe, não attingir a gloria nem a felicidade, não ter um a-
migo nem um amôr — tudo isso se pode supportar; o que se não pode suppor-
tar é sonhar uma cousa bella que não seja possivel conseguir em acto ou
palavras. A consciencia do trabalho perfeito, a fartura da obra obtida —
suave é o somno sob essa sombra de arvore, no verão calmo