Edição Teresa Sobral Cunha - Usa Teresa Sobral Cunha(186)

A noite invadia lentamente a minha inatenção


A noite invadia lentamente a minha inatenção. Despertei de repente para a ver entrada. Flutuavam ainda, nas indecisões da Natureza, ruídos incertos como se as coisas compusessem o manto para adormecer.

Tive um outro intervalo comigo próprio. Tornei a meditar, sem saber em quê. Quando de novo despertei, o silêncio era absoluto — lago invisível de todos os meus sonhos idos e das minhas esperanças mortas, e a minha consciência da vida afundava-se lentamente nele, assumindo, à medida que se afundava, noções novas de possibilidades de compreender a vida sob outros aspectos.

As casas eram grandes jazigos impossíveis. As árvores, no seu alinhamento ao longo da Avenida, vagas atitudes despidas de nos poderem dar qualquer ideia de vegetais.

Tive de repente uma sensação ampla e absurda — a de que eu era um mar, ou o traço de um mar, que a vaga proa de não sei que navio vinha erguidamente abrindo.

Pareceu-me que me dividia e que através do meu dividir-me passavam sensações de outras coisas, e que essas sensações, por me dividirem no passar, não eram sentidas por mim.

Acabou tudo como uma rua quando viramos a esquina. Tive uma dificuldade física em me crer existente. Para além da linha dos cimos dos prédios, olhava a mudez das estrelas. Olheia-as e pensei no quanto elas eram sempre novas e misteriosas para quem olha a vida de lado.

Um grande cansaço — sensação da inutilidade de andar e da estranheza de haver o facto de gente que anda e essa gente ser eu e consciência — roeu-me como um remorso. Precipitei-me ao encontro de todas as sensações absurdas que vieram a seguir. Não sei quais foram. Sei que delas ficou apenas, eco ondeante, um desalento esbatido e ácido, uma descrença até nas crenças que eu ainda haveria de ter.

Entre dois prédios deprimia-se o espaço arborizantemente negro do jardim de um deles. Pude ver ao fundo, por cima da silhueta de outros prédios em outras ruas, o crescente exageradamente nítido da lua. A vista dela pareceu falar-me da necessidade de sentir outra coisa qualquer, outra coisa nova e novamente absurda, ante ela, mas uma incapacidade de poder pensar em sentir mais coisas envolveu-me como um manto que levissimamente me impusessem...