Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 5-74r)

Cada vez que viajo


L. do D.

Cada vez que viajo, viajo immenso muito. O cansaço que tra-
go commigo de uma viagem de comboio até Cascaes
é como se fôsse o de ter, n'esse pouco tempo, percorrido
as paysagens de campo e cidade de quatro ou cinco
paizes.

Cada casa por que passo, cada chalet, cada casita
isolada caiada de branco e de silencio — em cada uma
d'ellas n'um momento me concebo vivendo, primeiro
feliz, depois tediento, cançado depois; e sinto que,
tendo-a abandonado, trago commigo uma saudade
enorme do tempo em que lá vivi. De modo que todas
as minhas viagens são uma colheita dolorosa e feliz
de grandes alegrias, de
tedios enormes, de innumeras falsas saudades.
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Depois, ao passar deante de casas, de "villas", de chalets,
vou vivendo em mim todas as vidas das creaturas que
alli estão. Vivo todas aquellas vidas domesticas ao mesmo
tempo. Sou o pae, a mãe, os filhos, os primos, a creada e o primo
da creada, ao mesmo tempo e tudo junto, pela arte es-
pecial que tenho de sentir ao mesmo [tempo] varias sensações diversas,
de viver ao mesmo tempo — e ao mesmo tempo por fóra, vendo-
-as, e por dentro sentindo-m'as — as vidas de varias crea-
turas.


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Criei em mim varias personalidades. Crio personalidades cons-
tantemente. Cada sonho meu é immediatamente, logo
ao apparecer sonhado, encarnado n'uma outra pessoa,
que passa a sonhal-o, e eu não.

Para crear destrui-me. Tanto me exteriorizei dentro
de mim, que dentro de mim não existo senão exterior-
mente. Sou a scena núa onde passam varios actores
representando varias peças.