Nem com pintar esse vidro de sombras coloridas


Nem com pintar esse vidro de sombras coloridas me occulto o rumor da vida alheia ao meu olhal-a, do outro lado.

Ditosos os fazedores de systemas pessimistas! Não só se amparam de ter feito qualquer cousa, como tambem se alegram do explicado, e se incluem na dôr universal.

Eu não me queixo pelo mundo. Não protesto em nome do universo. Não sou pessimista. Soffro e queixo-me, mas não sei se o que há de mal é o sofrimento nem sei se é humano sofrer. Que me importa saber se isso é certo ou não?

Eu soffro, não sei se merecidamente. (Corça perseguida.)

Eu não sou pessimista, sou triste.

Não me indigno porque a indignação é para os fortes; não me resigno, porque a resignação é para os nobres; não me calo, porque o silencio é para os grandes. E eu não sou forte, nem nobre, nem grande. Soffro e sonho. Queixo-me porque sou fraco e, porque sou artista, entretenho-me a tecer musicaes as minhas queixas e a arranjar meus sonhos conforme me parece melhor à minha idea de os achar bellos.

Só lamento o não ser creança, para que pudesse crêr nos meus sonhos, o não ser doido para que pudesse affastar da alma de todos os que me cercam, [...]

Tomar o sonho por real, viver demasiado os sonhos deu-me este espinho à rosa falsa de minha /sonhada/ vida: que nem os sonhos me agradam, porque lhes acho defeitos.


Título: Nem com pintar esse vidro de sombras coloridas
Heterónimo: Bernardo Soares
Volume: II
Número: 323
Página: 57
Nota: [8-9, ms.];