Jacinto do Prado Coelho - edição anotada - Usa Jacinto do Prado Coelho(344)

Intervallo doloroso


L. do D.

Intervallo doloroso

Tudo me cança, mesmo o que me não cança. A minha alegria é tão dolorosa como a minha dôr.

Quem me dera ser uma creança pondo barcos de papel n'um tanque da quinta, com um docel-rustico de entrelaçamentos de parreira pondo xadrezes de luz e sombra verde nos reflexos sombrios da pouca agua.

Entre mim e a vida ha um vidro tenue. Por mais nitidamente que eu veja e comprehenda a vida, eu não lhe posso tocar.

Raciocinar a minha tristeza? Para quê se o raciocinio é um esforço? e quem é triste não pode esforçar-se.

Nem mesmo abdico d'aquelles gestos banaes da vida de que eu tanto quereria abdicar. Abdicar é um esforço, e eu não possuo o de alma com que esforçar-me.

Quantas vezes me punge o não ser o accionante [?] d'aquelle carro, o cocheiro d'aquelle trem! qualquer banal Outro supposto cuja vida, por não ser minha, deliciosamente se me penetra de eu querel-a e se me posticia [?] de alheia!

Eu não teria o horror à vida como a uma Cousa. A noção da vida como um Todo não me esmagaria os hombros do pensamento.

Os meus sonhos são um refugio estupido, como um guarda-chuva contra um raio.

Sou tão inerte, tão pobrezinho, tão falho de gestos e d'actos.

Por mais que por mim me embrenhe todos os atalhos do meu sonho vão dar a clareiras de angustia.

Mesmo eu, o que sonha tanto, tenho intervallos em que o sonho me foge. Então as cousas apparecem-me nitidas. Esvae-se a nevoa de que me cerco. E todas as arestas visiveis ferem a carne da minha alma. Todas as durezas olhadas me magoam o conhecel'as durezas. Todos os pesos visiveis de objectos me pesam por a alma dentro.

A (minha) vida é como se me batessem com ella.