De resto eu não sonho


De resto eu não sonho, eu não vivo, salvo a vida real. Todas as naus são naus de sonho logo que esteja em nós o poder de (as) sonhar. O que mata o sonhador é não viver quando sonha; o que fere o [...] é não sonhar quando vive. Eu /fundi/ n'uma côr una de felicidade a beleza do sonho e a realidade da vida. Por mais que possuamos um sonho nunca se possue um sonho tanto como se possue o lenço que se tem na algibeira, ou, se quisermos, como se possue a nossa propria carne.

Por mais que se viva a vida em plena [...] e triumphante acção, nunca desaparecem o (...) do contacto com os outros, o tropeçar em obstaculos, ainda que minimos, o sentir o tempo decorrer.

Matar o sonho é matar-mo-nos. É mutilar a nossa alma. O sonho é o que temos de realmente nosso, de impenetravelmente e inexpugnavelmente nosso.

O Universo, a Vida — seja isso real ou illusão — é de todos, todos podem ver o que eu vejo, e possuir o que eu possuo — ou, pelo menos, pode conceber-se vendo-o e passando e isso é (...)

Mas o que eu sonho ninguem pode ver senão eu, ninguem a não ser eu possuir. E se do mundo exterior o meu vel-o differe de como outros o veem, isso vem de que do sonho meu eu ponho em vel-o sem querer, do que do sonho meu se colla a meus olhos e ouvidos.


Título: De resto eu não sonho
Heterónimo: Bernardo Soares
Volume: II
Número: 371
Página: 112 - 113
Nota: [9-46, ms.];