De resto eu não sonho


De resto eu não sonho, eu não vivo. Sonho
a vida real. Todas as naus são
naus de sonho, logo que esteja em
nós o poder de (as) sonhar. O
que mata o sonhador é não viver
quando sonha; o que fere o agente
é não sonhar quando vive. Eu fundi
n'uma côr una de
felicidade a belleza do
sonho e a realidade da
vida. Por mais que possuamos um sonho
nunca se possue um sonho tanto
como se possue o lenço que
se tem na algibeira, ou, se quizermos,
como se possue a nossa propria carne.
Por mais que se viva a vida em
plena e desanimada e turbulenta acção, nunca
desaparecem o       do contacto com os
outros, o tropeçar em obstaculos, ainda
que minimos, o sentir o tempo decorrer.

Matar o sonho é
matar-mo-nos. É
mutilar a nossa alma.
O sonho é o que temos
de realmente nosso,
de impenetravelmente
e inexpugnavelmente
nosso.

O Universo, a Vida, —
seja isso real ou illusão —
é de todos, todos podem
vêr o que eu vejo, e possuir
o que eu possuo — ou, pelo
menos, pode conceber-se
vendo-o e possuindo e isso
é

Mas o que eu sonho ninguem
pode vêr senão eu, ninguem
a não ser eu possuir. E
se do mundo exterior o meu
vel-o differe de como outros


o veem, isso
vem do que do
sonho meu eu
ponho em vel-o
sem querer, do
que do sonho meu
se colla a meus
olhos e
ouvidos.


Identificação: bn-acpc-e-e3-9-1-52_0100_46v_t24-C-R0150
Heterónimo: Não atribuído
Formato: Folha (22.1cm X 14.8cm)
Material: Papel
Colunas: 1
LdoD Mark: Sem marca LdoD
Manuscrito (pen) : Testemunho manuscrito a tinta preta.
Data: 1913 (low)
Nota: , Texto escrito sobre o rosto impresso de meia folha de "Proposta para Hypotheca". Este fragmento pertence ao grupo de testemunhos 9-43 a 46r.
Fac-símiles: BNP/E3, 9-46v.1