De resto eu não sonho, eu não vivo


De resto eu não sonho, eu não vivo, salvo a vida real. Todas as naus são naus de sonho, logo que esteja em nós o poder de sonhar. O que mata o sonhador é não viver quando sonha; o que fere o /argonauta/ é não sonhar quando vive. Eu fundi numa cor una de felicidade a beleza do sonho e a realidade da vida. Por mais que possuamos um sonho nunca se possui um sonho tanto como se possui o lenço que se tem na algibeira, ou, se quisermos, como se possui a nossa própria carne.

Por mais que se viva a vida em plena, desmedida e triunfante acção, nunca desaparecem o (...) do contacto com os outros, o tropeçar em obstáculos, ainda que mínimos, o sentir o tempo decorrer.

Matar o sonho é matarmo-nos. É mutilar a nossa alma. O sonho é o que temos de realmente nosso, de impenetravelmente e inexpugnavelmente nosso.

O Universo, a Vida — seja isso real ou ilusão — é de todos, todos podem ver o que eu vejo, e possuir o que eu possuo... ou, pelo menos, pode conceber-se vendo-o e possuindo e isso é (...)

Mas o que eu sonho ninguém pode ver senão eu, ninguém a não ser eu possuir. E se do mundo exterior o meu vê-lo difere de como outros o vêem, isso vem de que do sonho meu eu ponho em vê-lo sem querer, do que do sonho meu se cola a meus olhos e ouvidos.


Título: De resto eu não sonho, eu não vivo
Heterónimo: Vicente Guedes
Número: 40
Página: 81 - 82
Nota: [9-46, ms.];