Assim como, quer o saibamos quer não
Assim como, quer o saibamos quer não, temos todos uma metafisica, assim também, quer o queiramos quer não, temos todos uma moral. Tenho uma moral muito simples — não fazer a ninguém nem mal nem bem. Não fazer a ninguém mal, porque não só reconheço nos outros o mesmo direito que julgo que me cabe, de que não me incommodem, mas acho que bastam os males naturais para mal que tenha que haver no mundo. Vivemos
todos, neste mundo, a bordo de um navio saído de um porto que desconhecemos para um porto que ignoramos; devemos ter uns para os outros, uma amabilidade de viagem. Não fazer bem, porque não sei o que é o bem, nem se o faço quando julgo que o faço. Sei eu que males produzo se dou esmola? Sei eu que males produzo se educo ou instruo? Na dúvida, abstenho-me. E acho, ainda, que auxiliar ou esclarecer
é, em certo modo, fazer o mal de intervir na vida alheia. A bondade é um capricho temperamental: não temos o direito de fazer os outros víctimas de nossos caprichos, ainda que de humanidade ou de ternura. Os benefícios são coisas que se infligem; por isso os abomino friamente.
Se não faço o bem, por moral, também não exijo que mo façam. Se adoeço, o que mais me pesa é que obrigo alguém a tratar-me, coisa que me repugnaria de fazer a outrem. Nunca visitei um amigo doente. Sempre que, tendo eu adoecido,
me visitaram, sofri cada visita como um incomodo, um insulto, uma violação injustificável da minha intimidade decisiva. Não gosto que me dêem coisas; parecem com isso
obrigar-me a que as dê também — aos mesmos ou a outros, seja a quem fôr.
Sou altamente sociável de um modo altamente negativo. Sou a inoffensividade incarnada. Mas não sou mais do que isso,
não quero ser mais do que isso, não posso ser mais do que isso. Tenho para com tudo que existe uma ternura visual, um carinho da inteligência — nada no coração. Não tenho fé em nada, esperança de nada, caridade para nada. Abomino com náusea e pasmo os sinceros de todas as sinceridades
e os mysticos de todos os mysticismos ou, antes
e melhor, as sinceridades de todos os sinceros e os mysticismos de todos os mysticos. Essa nausea é quasi physica quando êsses mysticismos são activos, quando pretendem convencer a intelligência alheia, ou mover a vontade alheia, encontrar a verdade ou reformar o mundo.
Considero-me feliz por não ter já parentes. Não me vejo assim na obrigação, que inevitávelmente me pesaria, de ter que amar alguém. Não tenho saudades senão literàriamente. Lembro a minha infância com lágrimas, mas são lágrimas rhythmicas, onde já se prepara a prosa. Lembro-a como uma coisa
externa e atravéz de coisas externas; lembro só as coisas externas. Não é socêgo dos serões de província que me enternece
da infância que vivi nelles, é a disposição da mesa
para o chá, são os vultos dos móveis em tôrno da casa, são as caras e os gestos physicos das pessoas. É de quadros
que tenho saudades. Porisso tanto me enternece a minha infância como a de outrem: são ambas, no passado que não sei o que é, phenómenos puramente visuais, que sinto com a atenção literária. Enterneço-me, sim, mas não é porque lembro, mas porque vejo.
Nunca amei ninguém. O mais que tenho amado são sensações minhas — estados da visualidade consciente, impressões da audição disperta, perfumes que são uma maneira de a humildade do mundo externo fallar comigo, dizer-me coisas do passado (tam facil de lembrar pelos cheiros) — isto é, de me darem mais realidade, mais emoção, que o simples pão a coser lá dentro
na padaria funda, como naquella tarde longínqua em que vinha do entêrro do meu tio que me amara tanto e havia em mim vagamente a ternura de um alívio, não sei bem de quê.
É esta a minha moral, ou a minha metafísica, ou eu: Transeunte de tudo — até de minha própria alma —, não pertenço a nada, não desejo nada, não sou nada — centro abstracto de sensações impessoaes, espelho cahido sentiente virado para a variedade do mundo. Com isto, não sei se sou feliz ou infeliz; nem me importa.