Todo o pensamento, por mais que eu queira fi-
xal-o, se me converte, tarde ∧logo ou cedo, em devaneio.
Onde quizera pôr argumentos ou fazer correr raci-
ocinios, surgem-me phrases, primeiro expressivas
do próprio pensamento, depois subsidiarias das pri-
meiras,
por fim sombras e derivações d'aquellas
phrases subsidiarias.
Começo a meditar a existen-
cia de Deus, e encontro-me a fallar de parques
remotos, de cortejos feudaes, de rios passando
meio mudos sob as janellas do meu debruçamento;
e encontro-me fallando d'elles porque me encontro
vendo-os, sentindo-os, e ha um breve momento em
[que] uma brisa real me toca na face, surgida da super-
ficie do rio sonhado atravez de metaphoras,
do
feudalismo estylistico do meu abando-
no central.
Gosto de pensar porque sei que não tardarei em
não pensar. É como ponto de partida que o racio-
cinio me encanta — gare metallica e fria
onde se embarca para o grande Sul. Exforço-me,
ás vezes, por meditar um grande problema metaphy-
sico ou até social, pois sei que a voz rouca do
pensamento tem para mim caudas de pavão, que se
me irão abrindo se eu esquecer que penso, e que
o destino da humanidade é uma porta
num muro que não ha, e que eu posso portanto abrir
para os jardins que me aprouver.
Bemdito seja aquelle elemento ironico dos des-
tinos que dá
aos pobres de vida o sonho como pen-
samento,
assim como dá aos pobres de sonho, ou a
vida como pensamento ou o pensamento como vida.
Mas até o ∧sonho por correntenza de pensar se
me volve cançando ∧em cansar-me. E então abro os olhos de so-
nhar,
chego á janella e transfiro o sonho para as
ruas e os telhados. E é na contemplação
distrahida e profunda dos agglomerados de telhas
separadas em telhados,
cobrindo o contagio as-
tral
das gentes arruadas, que se me desprende de-
veras
a alma, e não penso, não sonho, não vejo,
não preciso; contemplo então deveras a abstracção
da Natureza, da Natureza, a diferença entre o
homem e Deus.