[Carta a Armando Côrtes-Rodrigues, 4 de Outubro de 1914]


                Lisboa, 4 de Outubro de 1914.

Meu querido Amigo:

Recebi a sua carta de 12 a 15 de Setembro, e
muito lh'a agradeço. Antes de tudo mais responderei
a ella.

Muito me agrada ler que a bucolização do seu
ser se tem operado a seu contento. Sim, depois de al-
guns annos de vida em Lisboa, esse reingresso na vida mais
proxima da do Universo deve ter-lhe trazido calma e
antiguidade ao espirito. Comprehendo isso muito bem.
Não sei se no seu caso sentiria o mesmo. Eu nunca sei,
n'este ou n'aquelle caso, o que sentiria. Ás vezes nem mesmo
sei o que sinto.

A proposito, cheio de uma ideia physica do campo, me
cita você as odes classicas do Ricardo Reis. Essas são em
verdade contemporaneas por dentro da edade eterna da
Natureza. Por sinal que, recentemente, só uma, e essa
inemendadamente, fiz. Pelo facto contido no, citado,
insolito advérbio, não lh'a mando. Nem lhe mando
outras pequenas cousas que tenho escripto n'estes dias.
Não são muito dignas de serem mandadas, umas; outras
estão incompletas; o resto tem sido quebrados e des-
connexos pedaços do Livro do Desassocego. Verdade
seja que descobri um novo genero de paulismo. Mas
preciso completar o feito. Então lh'o mandarei. Para
a mala seguinte, provavelmente.

Já me desviei da linha do assumpto. Deixei de
responder directamente á sua carta, para lhe fallar
dos meus trabalhos. Não importa: fica dito. E
de certo modo, sempre é responder á sua carta, poisque
n'ella v. me pede que lhe mande versos que tenha
feito.

Retomo para evitar mais desvios, a resposta, ver-
dadeiramente, á sua carta.


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Não tenho visto o Ferro. Elle está — sei — no Algarve.
Não sei quando volta. Não tive por isso occasião
para lhe dizer o que v. me indica.

O Sá-Carneiro está na sua quinta. Deve alli
demorar-se até ao fim d'este mez. Acabou ha
dias A Grande Sombra. Acabou-a completamente,
isto é, passada a limpo e tudo. É, a meu vêr, a
melhor cousa que elle tem feito. Magistral, meu
caro, magistral.

Como, apezar das melhores intenções minhas,
lhe escrevo á ultima hora, não copio a Ode á
Noite, ou, antes, o trecho "á Noite" da Ode
Triumphal Nº 3 de Alvaro de Campos.

A mala passada não lhe escrevi. Adiei
tanto uma carta, pensada extensa, que lhe
tencionava escrever, que, á ultima hora — dado,
de mais a mais, um subito aparecimento de
muito trabalho no escriptorio — não tive tempo
para lhe escrever. Poderia, é certo, ter es-
cripto um postal. Mas, ante a extensa carta
que eu pensára em lhe escrever, isso era
tão ignobil que preferi o silencio.

Em todo o caso v. desculpe-me.

Mesmo esta carta vae rapida e mais
breve — muito mais breve — do que eu dese-
jaria. Mas d'esta vez alguma cousa
hei-de escrever.

O Guisado vem aqui trez dias e depois
volta para a Galliza. Recebi hoje carta
d'elle.

Antes que me esqueça: O endereço do Sá-


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Carneiro é: Quinta da Victoria, Camarate
( Sacavem ). O do Guisado já v. sabe.

Noticias, propriamente noticias, não
ha nenhumas. Parece, porém, que v. não fez
mal em ir para ahi. Devem agora ir para
a França tropas nossas. Pelo numero que
possivelmente attingirão, v. corria risco de
ter de seguir.
                ─────

Duas notas curiosas e engraçadas, am-
bas com respeito ao mesmo assumpto:

Ha dias passava eu de carro na Avenida
Almirante Reis. Levanto os olhos por acaso,
leio no cabeçalho de uma loja: Pharmacia
A. Caeiro.

A outra é melhor. Como a unica pessoa
que podia suspeitar, ou, melhor, vir a suspeitar,
a verdade do caso Caeiro era o Ferro, eu
combinei com o Guisado que elle dissesse
aqui, como que casualmente, em occasião em
que estivesse presente o Ferro, que tinha
encontrado na Galliza "um tal Caeiro, que
me foi apresentado como poeta, mas com quem
não tive tempo de fallar", ou uma cousa
assim, vaga, n'este genero. O Guisado encon-
trou o Ferro acompanhado de um amigo cai-
xeiro-viajante, aliás. E começou a fallar
no Caeiro, como tendo-lhe sido apresentado,
e tendo trocado duas palavras apenas com
elle. "Se calhar é qualquér lepidoptero" disse


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o Ferro. "Nunca ouvi falar nele ..." — E, de
repente, soa, inesperada, a voz do caixeiro-
viajante: "Eu já ouvi falar n'esse poeta, e até
me parece que já li algures uns versos d'elle".
Hein? Para o caso de tirar todas as possiveis
suspeitas futuras ao Ferro não se podia exigir
melhor. O Guisado ia ficando doente de
riso reprimido, mas conseguiu continuar a ouvir.
E não voltou ao assumpto, visto o caixeiro-viajante
ter feito tudo o que era necessario.
                ─────

Agora o mais importante, o que era mais
preciso não esquecer dizer-lhe.

Em vez de uma revista interseccionista,
contendo o manifesto e obras nossas, decidi-
mos (e v., estou certo, concordará), para evitar
possiveis fiascos de não se poder continuar a
revista, etc., e, ao mesmo tempo, ficar cousa
mais escandalosa e definitiva, fazer appa-
recer o interseccionismo, não em uma
revista nossa, mas em um volume, uma
Anthologia do Interseccionismo. Seria este,
mesmo, o titulo.

Seria publicado logo que fôsse possivel,
logo depois de acabada a guerra, é de suppor.
A composição do volume deve ser esta, pouco
mais ou menos:
  1. Manifesto ( Ultimatum, aliás).
  2. Poesias e prosas de Fernando Pessôa.


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  3. Poesias e prosas ("Eu-próprio o Outro", pelo menos)
do Sá-Carneiro.
  4. Poesias e prosas de A. Côrtes-Rodrigues.
[Vá v. vendo o que de mais caracteristicamente in-
terseccionista tem; e vá mandando, para não
se perder tempo. Não sabemos ainda ao certo o
espaço que competirá a cada um, mas, devendo o
livro ter entre 96 e 128 paginas, v. deve poder fazer
um calculo approximado.]
  5. Poesias e prosas de A. P. Guisado.
  6. Poesias de Alvaro de Campos. ("Chuva
Obliqua" — Rei Cheops, etc.).
  7. O Interseccionismo explicado aos Inferiores.
[É aquella explicação do interseccionismo por
meio de graphicos que, uma vez, na Brazileira,
lhe delineei. Recorda-se?]

É boa idéa, não é? Feito o livro, não temos
que pensar mais no assumpto.

Decidimos não incluir na Anthologia, por
ainda muito creanças, social e paulicamente,
o Ferro, o Mourão, etc.

Agora a parte financeira do assumpto. Segundo
calculo do Guisado, quando fôsse preciso fazer o
volume, seria bom saber se podiamos contar com
v. para entrar com 10.000 reis para o custo
da produção. Pode ser?

Ahi fica exposto tudo. Já v. fica inteirado
dos nossos planos, que espero poderemos conside-
rar nossos totalmente, isto é, tambem seus.
                ─────


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O meu estado de espirito actual é de uma
depressão profunda e calma. Estou ha dias ao
nivel do Livro do Desassocego. E alguma
cousa d'essa obra tenho escripto. Ainda
hoje escrevi quase um capitulo todo.
                ─────

Escreva-me sempre que puder e
tanto (em quantidade) quanto possa.

Dê os meus cumprimentos a seu
Pae e sinta-se apertadamente abra-
çado pelo seu sempre e muito
dedicado

          Fernando Pessôa


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Heterónimo: Não atribuído
Formato: Folha (26.7cm X 21.5cm, 26.7cm X 21.5cm, 26.7cm X 21.5cm)
Material: Papel
Colunas: 1
LdoD Mark: Sem marca LdoD
Manuscrito (pen) : Testemunho manuscrito a tinta preta.
Data: 04-10-1914
Nota: , Carta dirigida a Armando Côrtes-Rodrigues, datada de 4 de outubro de 1914. Na edição de Jacinto do Prado Coelho, Maria Aliete Galhoz transcreve excertos desta carta num conjunto de testemunhos iniciais de Fernando Pessoa sobre o "Livro do Desassossego" (1982: XXXV-XLVII). Richard Zenith transcreve excertos desta carta no apêndice "Excertos de algumas cartas", integradas no conjunto intitulado "Escritos de Pessoa relativos ao Livro do Desassossego" (2012: 504-506).
Fac-símiles: BPARPD, ACR-CORR-4479-1-2-3.1 , BPARPD, ACR-CORR-4479-1-2-3.2 , BPARPD, ACR-CORR-4479-1-2-3.3 , BPARPD, ACR-CORR-4479-1-2-3.4 , BPARPD, ACR-CORR-4479-1-2-3.5 , BPARPD, ACR-CORR-4479-1-2-3.6